AS CINEASTAS DO FANTÁSTICO

Por Filippo Pitanga

Hoje vamos falar de alguém que prescinde de conceitos, porque os reinventa e ressignifica, e está à frente deles: a icônica Agnès Varda.

Talvez seja estranho anunciar a grande mestra cineasta e documentarista reverenciada como uma das diretoras do Cinema Fantástico… Mas como descrever uma realizadora que recriava a realidade a bel prazer, como versos de um poema ou fractais de uma pantomima, cujos documentários eram ensaios refletidos de suas mais oníricas angústias e sonhos, senão justamente como uma cineasta fantástica?!

Podemos citar, logo de plano, como Varda confabula sua própria autobiografia no cinema enchendo uma praia com muitos espelhos para se debruçar sobre suas memórias (“As Praias de Agnès” de 2009). Ela reencena momentos da sua vida nestas areias, como um teatro mambembe, e inunda as suas memórias numa praia portátil! Ela chega ao nível de até mesmo reconstruir o escritório de sua equipe com biquínis e sungas bem no meio das calçadas asfaltadas de Paris, sobre camadas de areia e baldes de água salgada, enquanto os transeuntes urbanos passam a observar, perplexos! A realidade e a autofabulação transbordando um no outro e alterando um ao outro. Uma diretora que, para fazer um documentário sobre batatas (na verdade sobre trabalho proletariado contra o capital), fantasia a si própria de batata e interage com os visitantes da instalação que criou para o filme, e cujo olhar mira de volta a recriar a realidade filmada (“Os Catadores e Eu” de 2000).

Agnès Varda (1928-2019), belga:

A verdadeira precursora da Nouvelle Vague na realidade foi esta mulher incrível, Agnès Varda, que demorou décadas para ser reconhecida como tal até mesmo pela famosa revista referencial Cahiers du Cinéma (lembrando que eu fui aluno do ex-editor da Cahiers, Jean-Michel Frodon, o qual referendou este reconhecimento quando ainda trabalhava na revista), mesmo que se costume até hoje ser dito que o movimento teria iniciado com François Truffaut e Jean-Luc Godard (evidente, nomes cruciais sem os quais o movimento não seria delimitado e nomeado como tal) – numa clara tentativa de se apagar a importância da figura feminina dos principais movimentos do cinema como se fazia estruturalmente naquela época (e até hoje).

Vale lembrar que várias pedras fundamentais precederam a nomeação do movimento Nouvelle Vague como passaríamos a conhecê-lo, como a própria obra da cineasta: “La Pointe Courte” de 1955; tanto quanto outros filmes que foram forte influência para se demarcar também as características da Nouvelle Vague, como: “Nas Garras do Vício” de Claude Chabrol (1958), “Hiroshima Mon Amour” de Alain Resnais (1959) etc – e que nortearam o que viria.

Muitos dos temas de Varda foram ousados e vanguardistas, como trabalhar o aborto misturado ao gênero musical em “Uma Canta, A Outra não” (“L’une chante, l’autre pas” de 1977). Agnès Varda demonstrou que pensava o cinema em estreita relação com as artes plásticas e a literatura, priorizando seu caráter experimental e político, realismo documental, feminismo e comentário social, ao mesmo tempo em que evocava a fantasia e autofabulação da realidade para alterar o próprio tecido do real. A figura feminina como protagonista, independente de personagens masculinos que as regessem, em grande parte negligenciada pela Nouvelle Vague, ganha nos seus filmes uma importância central do ponto de vista narrativo que prescinde da figura de um coprotagonista masculino ou de um par romântico típico.

Primeiro longa-metragem de Varda, “La Pointe Courte” é uma das maiores pedras fundamentais da Nouvelle Vague, quiçá a maior, antes mesmo de outras obras paradigmáticas como “Acossado” dirigido por Godard e com roteiro feito junto a Truffaut… Neste filme de 1955, Varda estava fazendo uma espécie de documentário sobre a região pesqueira de Pointe Courte, quando decide filmar uma “DR” de casal em narrativa ficcional no meio do doc, mesclando as duas linguagens como gostaria de fazer a carreira inteira. Tudo por causa da inspiração da separação de seu primeiro companheiro (antes de Jacques Demy). E chamou Philippe Noiret (em seu primeiro protagonista na telona, que viria a ser o astro de “Cinema Paradiso” e “O Carteiro e o Poeta) e Silvia Monfort (da versão de “Os Miseráveis” de 1957) para interpretar esses textos.

“Cleo de 5 às 7” de 1962 é outra de suas obras paradigmáticas, essa sim já notoriamente reconhecida dentro da Nouvelle Vague, até por seus companheiros de movimento (que eram super excludentes e não reconheciam quase nenhuma mulher cineasta). Muito antes do seriado de TV contemporâneo “24 Horas” com Kiefer Sutherland interpretando Jack Bauer, havia este filme inaugurando a famosa linguagem do “tempo real” no cinema. Isso não quer dizer plano sequência, atenção! Há cortes na montagem! O “tempo real” significa que a passagem de tempo no filme imita o tempo da vida real, de 5 Às 7. E este tom de realidade é paradoxalmente oposto à primeira cena que começa numa cartomante tirando cartas de tarot para prever um imaginário do destino da protagonista (lembrando a cena inicial de “A Hora da Estrela” de Suzana Amaral de 1985 e adaptado do romance de Clarice Linspector de 1977).

“As duas faces da felicidade” (“Le Bonheur” de 1965) desaba com a estrutura familiar típica colapsando o olhar tradicional sobre os arquétipo sociais. E Varda mais uma vez utiliza a linguagem de forma inversamente proporcional à ironia da história, fazendo uma narrativa extremamente colorida e alegre em seu formato, mesmo que o conteúdo seja criticamente denso. Até a trilha sonora é leve, toda de Mozart, independente de as personagens entrarem numa espiral de destruição.

“Os Renegados” (também conhecido como “Sem Teto, Nem Lei” ou “Sans toit ni loi”) de 1985 é um olhar brilhante sobre uma jovem mulher desgarrada da sociedade por opção, vivendo as próprias regras e não se dobrando a nada nem ninguém numa incrível interpretação de Sandrine Bonnaire, com travellings laterais que pontuam a narrativa acompanhando a protagonista sempre da direita para a esquerda, saindo da razão para a emoção (até porque Varda era cineasta conhecida por fazer parte da Rive Gauche da Nouvelle Vague).

Ela foi casada com o diretor Jacques Demy (mestre dos musicais fantasiosos e alegóricos, como “Pele de Asno”) até a morte dele, em 1990. Ela o homenageou também num filme semi-biográfico e ensaístico, “Jacquot de Nantes” (1991), onde reconfigura a vida de seu amado de forma igualmente fantasiosa, a mesclar tempos diferentes com anseios e desejos não necessariamente realistas, sob a perspectiva lúdica de sua infância, quando sonhava em ser cineasta, pois o cinema pode recriar realidades a bel prazer. E esta é mais uma grande lição que Varda nos deixou ao partir em 2019 com 90 anos.

Vale citar alguns reconhecimentos de seus filmes:

“Cléo das 5 às 7” – Cannes 62 – indicado à Palma de Ouro

“As duas faces da felicidade” – Berlim 65 – Prêmio Especial do Júri

“Os renegados” – Veneza 85 – Leão de Ouro e Prêmio da Crítica

“Os catadores e eu” – Prêmio do Cinema Europeu 2000 – Melhor Documentário

“As praias de Agnès” – Cesar 2009 – Melhor Documentário

“Visages, Villages” – Golden Eye (dividido com o codiretor JR) e Palme de Whiskers – Cannes 2017

Filippo Pitanga é advogado, jornalista, curador e crítico de cinema, mestrando pela UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor na Academia Internacional de Cinema RJ, Membro da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro – ACCRJ.

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