AS CINEASTAS DO FANTÁSTICO. Por Filippo Pitanga.

Adentrando já na Nouvelle Vague Tcheca, o nome de hoje é uma das maiores vanguardistas da experimentação e do desbravamento dos limites da realidade cinematográfica: Vera Chytilová.

Vera Chytilová (1924 – 2014), tcheca:

Chytilová, pioneira no cinema Tcheco, encarna uma linguagem cinematográfica única e estilo que não depende de quaisquer convenções literárias ou verbais, mas utiliza várias formas de manipulações visuais para criar sentido dentro de seus filmes, com fortes toques de cinema fantástico, fabular, distópico e experimental (não apenas nas histórias, como na própria feitura).

Os filmes da primeira fase da cineasta, do média-metragem “O Teto” (1961) à obra-prima em longa-metragem “As Pequenas Margaridas” (1966), não apenas prenunciam a revolta juvenil (operária e estudantil) que marcou a Primavera de Praga na Tchecoslováquia de 1968, como são também um testemunho dos mais relevantes no contexto geral do cinema novo europeu, na conflituosa afirmação da individualidade feminina na sociedade moderna do pós-Segunda Guerra. (podem conferir os respectivos filmes na íntegra e legendados em português logo baixo).

“As Pequenas Margaridas” entrou no panteão da história do cinema como um dos maiores filmes de todos os tempos, e geralmente lembrado como um dos favoritos dirigidos por mulheres da cinefilia mundial. Um filme que seria extremamente simples, versando sobre as desventuras de duas jovens pela cidade, seus desencantos e paixões… Mas cujo crescimento advém da linguagem cinematográfica dilapidada em estado puro, como nas cenas em que as amigas brincam de atear fogo na própria casa, ou quando pegam uma tesoura e cortam o próprio filme, cortando a si mesmas e uma à outra, o que ocasiona termos cabeças e braços soltos perambulando pela tela – Muita atenção, não é uma cena de violência, é uma cena de cinema! Onde os corpos e cenas podem ser editados e remontados a bel prazer na tela. Onde uma cena em P&B na praia pode desembocar nos prados coloridos de uma paisagem montanhosa. Tudo de repente, num piscar de olhos. E onde os sons não precisam corresponder às imagens, e até um diálogo pode não emitir palavras, e sim notas musicais dos lábios de suas personagens.

Essas instâncias de delírio na tela fez com que o filme não fosse muito compreendido pelo regime mais rígido que se instaurava no governo, que chegou até a censurar a obra… Só não sabiam como censurar ou mesmo pelo quê! Afinal, o que há pra censurar em duas jovens rebeldes cuja libertinagem era virar a realização fílmica de cabeça pra baixo, de dentro pra fora da tela? Por isso, o regime acabou censurando o filme por sua cena final (pequeno SPOILER: uma cena de guerra de comida, que foi censurada justamente pelo desperdício de comida. FIM DO SPOILER). Anos depois, quando já liberada da censura, Vera Chytilová relançou o filme dedicando-o a todos que tinham problemas com quem “pisava em saladas” (era uma ironia com a censura por desperdício de comida…).

Contudo, esta não foi a única obra paradigmática e que se encaixa no cinema de gênero na carreira da diretora. Ela reviu o conceito de Adão e Eva, por exemplo, brincando de perpassar as fábulas infantis, como nos arquétipos de Branca de Neve e o Lobo Mau, para desconstruir o lugar da mulher na sociedade patriarcal, como no filme “Fruto Proibido”, que também elenco logo abaixo na íntegra e legendado em português com link no Youtube)

Outras de suas obras reverberaram diálogo inclusive com colegas diretoras contemporâneas, de filme para filme, apesar de não podermos precisar o quanto as respetivas haviam assistido o cinema umas das outras antes de fazerem os respectivos filmes. Um perfeito exemplo de diálogo de obras é o supracitado “O Teto” (1961) de Chytilová e “Cléo de 5 às 7” de Agnès Varda, cujo anseio de uma protagonista andarilha nos espaços urbanos dentre olhares vigilantes de homens e mulheres tanto mais novos, quanto mais velhos, bem como a trajetória por vitrines espelhadas e interlocuções geracionais em cafés amontoados podem ser traçados em ambas – quase como se suas formas de pensar o cinema, independente de conhecerem ou não uma à outra anteriormente, estivessem correspondendo a anseios em sintonia de uma mesma época (apesar de que elas de fato viriam a se conhecer posteriormente em registros históricos bastante públicos, e até a dialogar sobre o assunto). Esta aproximação entre as mestras foi objeto de debate na Mostra Vera Chytilová ano passado, em debate com a curadora Rosa Monteiro, a videoartista Célia Freitas e a crítica de cinema e antropóloga Samantha Brasil, tendo exibido na Mostra o trecho de um ensaio visual, mesclando cenas dos dois filmes correlacionados acima, chamado “The Thinking Machine 20: A Carnival of Souls” de De Filmkrant (também linkado logo abaixo).

Confiram alguns dos links para as respectivas obras:

“As Pequenas Margaridas”:

https://youtu.be/L9KGOGk8YUM

 

“Fruto Proibido”

https://youtu.be/BBWd_DBI8c0

 

“O Teto”

https://youtu.be/agl_s4_acck

 

Análise associativa de cenas de “O Teto” de Chytilová e “Cléo de 5 às 7” (“The Thinking Machine 20: A Carnival of Souls” de De Filmkrant):

https://vimeo.com/281453569

 

Filippo Pitanga é advogado, jornalista, curador e crítico de cinema, mestrando pela UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor na Academia Internacional de Cinema RJ, Membro da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro – ACCRJ.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui