A 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo também conta com exemplares desafiadores do gênero de ficção-científica, como o polêmico “O Problema de Nascer” da alemã Sandra Wollner (Prêmio Especial do Júri na Mostra Encontros na Berlinale). Infelizmente, antes mesmo de muita gente poder dar uma real chance ao filme, e avaliá-lo pelo que tem a oferecer, vem sendo injustiçado por acusações infundadas similares às recentes feitas ao filme “Lindinhas”, que virou pivô e alvo do governo quando a Ministra Damares acusou equivocadamente o filme de atentado ao pudor, e não entendeu a crítica ali contida a ultra sexualização da juventude contemporânea (leia mais sobre isso aqui).

Porém, de forma mais complexa e sofisticada, “O Problema de Nascer” constrói alegorias críticas que se posicionam bem mais próximas entre “Inteligência Artificial” (2001) e “Pretty Baby” (1978). E, na verdade, o filme denuncia o esvaziamento da infância e os usos de representações substitutivas da realidade no mundo virtual contemporâneo, e não o contrário. A trama segue uma personagem que, de início, aparenta ser apenas uma jovem tirando férias com seu pai… Porém, logo logo a situação se torna complexa e repreensível, com alguma coisa mais parecendo estar prestes a irromper entre estas duas personagens. Aos poucos o espectador entende que não se trata de uma jovem normal, e sim de uma ciborgue. E, da mesma forma, o filme não estaria enaltecendo estas relações equivocadas como se agisse permissivamente com as lentes da câmera, e sim como uma crítica que jáq vai retirar o chão onde estes mesmos arquétipos se sustentam…

A ciborgue vai sofrendo metamorfoses durante o filme, de forma híbrida e não binária, sendo tanto uma jovem moça quanto depois um rapaz, e se adequando às famílias que a adotam… Porém, jamais conseguindo a empatia de agir com as mesmas emoções em retorno. Numa reversão da história de Pinóquio, o eterno boneco de madeira que queria ser um menino de verdade, esta construção artificial está ali como um espelho que reflete o quanto estas pessoas que a adotam não conseguem se comunicar com a perda que desejam substituir, e nem se relacionar com os vivos.

Uma estética a princípio asséptica e mais tardar propositalmente mais intimista vão descortinando que não obstante a personalidade de quem interage com nossa pequena protagonista, todos são seres egoístas e auto centrados, desprovidos da mesma empatia pelo outro que um ciborgue não conseguiria igualmente reproduzir. A falha não é mecânica, e sim originariamente humana. E por isso os ambientes que comportam essas experiências vão refletindo em cenários, locações e até figurinos essa confusão humana, com mais ou menos recursos que seus detentores ostentam — ricos ou mais humildes, todos só querem substituir e preencher suas próprias carências egoístas. Sempre de forma excludente e destrutiva, o que pode levar a tratar pessoas como coisas e coisas como pessoas e, inclusive, passar como um trator por cima de todas as coisas e pessoas…

 

 

 

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