VAZANTE –  A doença histórica do preconceito

 

Há uma doença histórica que age silenciosamente, mas contamina a sociedade de forma sorrateira e inapelável. É uma doença mórbida, extremamente contagiosa, que assassinou milhões de judeus nos campos de concentração, criou a escravidão, discrimina as minorias indefesas, sempre foi hospedeira das classes dominantes e habita entre nós desde o início da civilização. Essa doença se chama preconceito.

“Vazante” de Daniela Thomas é um filme ambientado em Minas, mas se universaliza quando conclui que o preconceito, como doença social, serve à morte e nega a vida, se constitui em drama que desemboca  em um fim trágico e atinge tanto a vítima quanto o algoz, vide o final de Hitler e de Mussolini. A última cena de “Vazante” nos mostra isso de forma brilhante quando o todo poderoso dono da fazenda, da mulher, da casa do sogro, das terras e da senzala descobre que seu herdeiro  é filho do adultério de sua mulher com um escravo. Isso provoca a queda  vertiginosa do universo preconceituoso  desse senhor  de tudo e de todos que vê seu poder absoluto desmoronar, diante da ação incontrolável do destino, lembrando os epílogos da tragédia grega.  Mas, no fim das contas, a grande mensagem que fica é de vida, vem da coragem da mãe adolescente que enfrenta a situação, desafia as circunstâncias e acalenta afetuosamente o bebê negro diante do marido com a arma recarregada depois de matar o amante e pai da criança. A cena nos lembra o final de “O Bebê de Rosemary”: lá, o amor de mãe vence o mal encarnado, aqui vence o preconceito social e o medo da morte. Esse desfecho se dá, certamente, como expressão da coragem e sensibilidade artística  da talentosa Daniela Thomas.

Dessa forma, a diretora, estreando em longa-metragem solo,  realiza uma obra madura e extremamente sensível. Pelo ponto de vista formal, vemos isso na construção das cenas apoiadas na bem cuidada interpretação dos atores, nos planos próximos pausados que refletem o vazio da alma do dono da fazenda distanciado do afeto familiar,  contrastando com os planos sequência das celebrações da alegria dos negros, na condição de escravos, mas fora do lugar comum da tortura no tronco e das chicotadas do capataz. Tudo isso desemboca na justaposição esmerada de uma narrativa que dá unidade e ritmo ao discurso estético e conduz um cotidiano esvaziado de humanidade na relação do senhor e sua mulher adolescente que acaba se apaixonando  por um jovem escravo de sua idade.

 Assistindo ao filme, seguimos o roteiro simples e linear da diretora em parceria com Beto Amaral que, sem tomar partido, mostra a escalada da crueldade que se torna natural no cotidiano em que as normas e procedimentos da rotina da fazenda mostram a gênese da sociedade escravocrata mineira no início do Século XIX.  A ação evolui, passo a passo, em ritmo lento, mas intenso, por entre as montanhas cinzentas de cascalho, pontuando o cotidiano ambientado em uma fazenda decadente, onde a conversa dos donos se dá entre pausas de silêncio prolongado. Essa diálogo moroso, ocorre quase sempre no interior da fazenda,  reconstituído com objetos e utensílios  de época de extremo bom gosto resultando em uma esplendorosa direção de arte. Isso contribui para enriquecer o clima denso da ação registrado nas imagens de uma bem cuidada fotografia preto e branco do peruano Inti Briones, que imprime o contorno das montanhas mineiras com belíssimos enquadramentos e pontua o correr do tempo cinematográfico nas sucessivas sequências que perpassam as personagens e as locações muito bem escolhidas . Enfim, com “Grande Sertão Veredas” de Roberto Santos e “O Padre e a Moça” de Joaquim Pedro de Andrade, “Vazante” de Daniela Thomas ficará como mais um clássico do cinema brasileiro que registra com maestria a natureza mineira e a rica e multifacética cultura das Minas Gerais.

Jesus Chediak

Diretor Cultural da ABI

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