Silêncio: Teste de fé*

por Filippo Pitanga – originalmente publicado em 16 de abril de 2017 no Almanaque Virtual

Logo no dia de Páscoa, da ressurreição de Cristo, precisamos falar de “Silêncio”, subestimado filme mais recente de Scorsese, que ainda pode ser encontrado em cartaz. Todavia, mais como um desabafo do que como uma crítica. Aliás, quase uma confissão de fé, logo no dia de Páscoa.

Apesar de ser impossível desligar um olhar naturalmente reflexivo com como experiências assim se intensificam para mim, a questão é que o desafio de foro íntimo foi tão grande, neste caso, que se tornou impossível dissociar uma coisa da outra. Tanto que só consegui terminar de escrever esse texto agora e utilizando a primeira pessoa para falar diretamente com o leitor.

Confesso que tive muitos problemas a enfrentar para conseguir assistir ao filme. Não apenas na agenda, e sim mais profundo, em minha crença pessoal. Tenho fé e também possui estudos de inúmeras crenças, apesar de não seguir nenhuma propriamente dita. Já até me tacharam de ateu e/ou agnóstico, o que não haveria problema algum se eu fosse, a despeito de não sê-lo. Tenho fé e ponto final, sim, ainda que não desprovida de senso autocrítico com qual questiono a mim e às instituições religiosas constantemente, num ato vinculado ao próprio substrato de acreditar ou sentir algo maior advindo de uma força criadora. Questionar para mim não diminui a crença, a dinamiza e amplifica.

Eu já sabia que o filme “Silêncio” traria uma forte carga religiosa, talvez tendenciosa. Afinal, é a adaptação de um livro escrito por um japonês, já adaptado anteriormente para os cinemas pelos próprios japoneses, com protagonistas no original interpretando padres portugueses, e agora readaptados na direção de um ítalo-americano com atores de língua inglesa. Por si só uma babel digna da Bíblia… Meu receio não era me deparar com minha fé, como num espelho, e sim com a forma muitas vezes condicionante com que esta fé é encarada por pessoas mais ritualistas, institucionalmente falando.

Este era meu medo com Scorsese, mesmo tendo acompanhado a sua evolução no assunto com os outros dois filmes sobre religiosidade, “A Última Tentação de Cristo” e “Kundum”, que comporiam informalmente uma trilogia temática agora encerrada com “Silêncio”. O meu medo era que ele fizesse uma declaração à Igreja e não à fé, o que era corroborado pelo testemunho de várias pessoas com quem comungo afinidades culturais, sempre me dizendo que talvez o filme fosse um pouco excessivamente “católico” desde suas passagens por estréias internacionais. Lembremos que fé e religião são duas coisas diferentes, pois uma é do espírito, de dentro pra fora, e a outra é uma organização de ritos e dogmas sob a ótica humana que exerce influência de fora pra dentro.

Quanto à história, a maioria já sabe sobre o que versa: um período controverso do Japão, egresso de um feudalismo retardatário, proíbe legalmente a religião católica em seu território nacional, sob pena de morte. Dois padres portugueses, Andrew Garfield (muito melhor aqui que no risível “Até o Último Homem” que lhe valeu uma injusta indicação ao Oscar de melhor ator) e Adam Driver, insistem em ir atrás de seu mentor, Ferreira (Liam Neeson), cujos rastros foram perdidos após enfrentar torturas horrendas por tentar catequizar os pobres. Como já havia assistido o original dirigido por Masahiro Shinoda, que tenta não tomar partidos e apenas retratar os dois lados, estava preparado para boa parte do desenvolvimento de trama como estrutura narrativa proveniente da obra literária, ainda que Scorsese acrescente bastante coisa.

O fato é que o olhar duplamente estrangeiro do cineasta acaba funcionando e muito em potencializar fatores subutilizados em seu predecessor, como certa abnegação natural daqueles que acreditam em algo maior do que eles em se doar de forma altruísta, de modo a sentir a dor do outro e reparti-la. Isto se aplica aos protagonistas com ainda mais sentido e motivação do que o espírito meramente kamikase do original em irem para a morte certa apenas para encontrar seu mestre. Neste exemplar, Scorsese mostra que, independente da religião, um povo tem direitos básicos de dignidade e esclarecimento advindos de possuir alguma fé, que numa extrema miserabilidade já pode fazer toda a diferença pra alma, mesmo que não pra subsistência do corpo material.

E isto era perigoso numa época de alta exploração da mão-de-obra rural análoga à escravidão, especialmente através da cobrança de pesados tributos do governo… Se o povo acreditasse, através da religião cristã, que a matéria deve ser compartilhada com todos, e não concentrada nas mãos de alguns, repartida com solidariedade e piedade, e que a recompensa destes atos garantiriam um lugar ao céu, poderiam deixar de acreditar no sistema de opressão em que o governante era a hierarquia máxima.

O que valeria para ser julgado na cosmologia do que acontece além da vida é o que acontece aqui e agora. E, de modo inversamente proporcional, a visão deturpada pelo governo da religião budista lhes era conveniente na época, reiterando que o trabalho era bom para colher frutos ao reencarnar numa próxima vida (nada contra a religião budista, da qual sou até muito partidário, por sinal, mas era uma interpretação daquele período que a obra original apresenta).

Até a metade do filme esta proposta é muito bem resolvida, incluindo uma lírica sublimação da dor através da catarse da salvação da alma para os que sofrem em cenas bastante sádicas, porém necessárias, como a da crucificação no mar, que desemboca em uma pira de fumaça de gelar a espinha cujo significado transcende a carne e alcança o espírito.

Isso sem falar que o grande diretor prima na linguagem técnica, abusando de zênite com grande angular (visão num ângulo Reto de 90 graus visto de cima para baixo, e usando lentes de câmera que deformam a imagem de modo a aproximar o centro do quadro e afastar o restante). Esta alegoria na forma de filmar, logo em um filme sobre o suposto Silêncio de Deus, quer metaforizar justo o olhar onipresente de cima que, a despeito de aparentemente não responder, está sempre vigilante e sofrendo por nós.

Assim, Scorsese mostra que nada é a toa na brilhante fotografia de seu mais recente parceiro Rodrigo Prieto (ex fotógrafo de Iñárritu), injustamente a única categoria onde o filme foi indicado ao Oscar. Consegue transcender o deslumbre visual das ilhas paradisíacas onde tudo foi filmado, como pelo uso da câmera no conteúdo da história, como mais de um personagem contraposto, ora pelo olhar de Deus, ora pelo intimismo do homem, ancorado por grades, janelas e portas, como os impedimentos de vida que criamos para nós mesmos.

Sem falar no meticuloso trabalho de som, pois engana-se quem pensa que silêncios no cinema são sinônimo de imagem desprovida de som, sendo necessária uma captação de sutilezas e realces ambientes e naturais para que possamos apreciar ainda mais o contraste das lacunas supostamente vazias. (Vide o início com o piar de pássaros).

É apenas a partir da segunda metade que o filme talvez perca a chance de ser o maior da carreira do cineasta. Nada que obste sua magnitude, porém arranhões contornáveis. Enquanto no original o personagem mais caricatural a perder um pouco da força catártica do texto é justamente o do Padre Ferreira, que aqui na pele de Liam Neeson brilha intensamente, na nova versão é o inquisidor japonês que vira o mais caricato, desnecessariamente.

Como nenhum dos dois filmes possui um vilão maior do que a superação dos obstáculos internos à fé, o lugar de fala entre a religião e o homem prescindia de um maniqueísmo superficial em tornar o inquisidor numa risível paródia, de forma a tornar mais absurda a perseguição contra os cristãos, sendo que as razões históricas eram maiores do que isso. Tanto que a melhor cena no primeiro filme entre ele e o protagonista, em um ótimo diálogo que fala das concubinas como analogia para relações exteriores de uma nação, aqui se esvai como rinha de galo, apenas para o padre parecer superior moralmente, e projetando a maior parte da ironia pérfida para o novo personagem do tradutor que ficou com metade do arquétipo do inquisidor original.

Para além de pequenas distrações típicas de uma produção autoindulgente e hegemônica americana, como todos falarem inglês (japoneses e portugueses), mesmo que o roteiro chame a língua dos padres de portuguesa, esta suspensão da realidade passa até despercebida, ante as reflexões trazidas principalmente pelos diálogos com o personagem de Liam Neeson. A frase em que ele explica que a santíssima Trindade para os japoneses jamais foi compreendida de fato, pois ao invés de ouvirem “son” (filho) eles entendem “sun” (sol), e isto quebraria com o conceito de divindade cristã (pois o Sol e outras materialidades apenas são sagradas em outras religiões), é uma das mais reflexivas provocações etimológicas de fala que um diálogo bem escrito poderia trazer. Mas, ao mesmo tempo, começa a haver uma insistência em engrandecer a religião católica através da vitimização de seu próprio açoitamento deliberado, retirando o poder do indivíduo para colocá-lo na instituição.

Tudo bem que é aí que entra mais uma vez a crença pessoal de quem vos escreve, mais próxima do pensamento de Nietzsche em crer na potência de Jesus Cristo como uma possibilidade exemplar humana, e não uma divindade que se separa do que podemos nos tornar. Mas o maniqueísmo era dispensável ante a força real do filme que, até para um possuidor de fé sem qualquer religião específica, seria impossível negar.

O acréscimo do perdão através de outro personagem caricato, Kichijiro, melhor utilizado aqui do que no outro filme, já demonstra que o importante não é o pecado que cometemos e sim o que fazemos ou sentimos a partir dele, e que o perdão pode vir de muitas maneiras e muitos tempos, mas precisa primeiro sempre vir de dentro para fora, ainda que em silêncio.

Mesmo para quem não tem alguma religião definida e gosta de estudar um pouco de todas elas, como eu, decerto irá se encontrar na busca que este filme faz por alguma força transcendental na qual possamos nos alicerçar sob condições de opressão extrema. Até porque agrega, em meio ao “silêncio” do título, e à caçada que os japoneses fazem a todos os crentes e seus objetos de crença, uma interessante discussão de até onde podemos nomear a identidade da fé se todos os arquétipos nominativos nos são retirados, e algo que naturalmente nasce de dentro precisa ficar calado e não ser manifestado.

O quanto a privação dos hábitos e dos símbolos diminuiria o pensamento? Por que a própria Bíblia quando idealizada não havia previsto tamanha reprodução comercial da religião como um produto que pudesse ser vendido numa loja de quadros e santinhos? Ou será que previu? Precisamos destas representações apenas como confortos de que não estamos sozinhos, já que se Jesus Cristo fosse um fantasminha camarada que nos aparecesse toda vez que chamássemos, não apenas ele se cansaria de nós, e levaríamos bons sustos a cada aparição até nós nos cansarmos, como esvaziaríamos boa parte do mistério a embasar nossa crença.

O verdadeiro significado de mantermos este mistério está no exercício diário de perdão, abnegação, altruísmo, solidariedade e doação, dos quais vivemos nos esquecendo até sermos levados a precisar. Foi isso que Scorsese fez, conduziu o espectador a um sofrimento extremo para lembrá-lo do essencial: a fé.

*O filme se encontra atualmente disponível na plataforma de streaming do Telecine.

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