É bastante compreensível que todos no Brasil estejam se identificando muito com “Não Olhe para Cima” (“Don’t Look Up”) de Adam McKay na #Netflix. Para nós brasileiros, decerto o filme fala ainda mais alto. É algo necessário como pauta, principalmente pelas analogias involuntárias com a despolítica atual e o negacionismo histórico. Explica-se: no filme, o povo é levado a não acreditar que um meteoro irá atingir a Terra e destruir o planeta (enquanto aqui sofremos com pessoas que desacreditaram a pandemia e lutaram contra a vacina sem qualquer fundamento científico).

Porém, como filme, há certos incômodos de linguagem que talvez enfraqueçam um diálogo mais amplo. Como paródia, falta anarquia à la Monthy Python. Como linguagem, tudo é hiperbólico e repetitivo, para o caso de alguém não entender 100% o que já havia sido afirmado. Numa era de fake news, é natural ver a hipérbole viral como estética, mas, como filme, faltou intenção de refinamento. Mesmo com elenco mega estelar, e talvez até mesmo em detrimento dele, pois não há aproveitamento real de tantos nomes consagrados que viram estereótipos rasos: De Leonardo DiCaprio e Jennifer Lawrence a Meryl Streep e Cate Blanchett.

Não obstante a narrativa aparentar que Jennifer Lawrence seja apresentada como protagonista de início, sua personagem, uma cientista astrônoma que defende a fundamentação científica (e que muitos estão enxergando como nossa Natália Pasternak no Brasil), vai diluindo apenas como disparador inicial e depois sendo levada pela correnteza. Sua construção é monocórdia e sem camadas, apesar da evidente e sempre necessária crítica à misoginia estrutural.

Até quase parece levar a crer no final do segundo ato que sua personagem se transformaria num símbolo anarquista dos rejeitados, mas nem isso, porque o outro cientista interpretado por Leonardo Dicaprio, depois de ter se arrependido por se vender, decide gritar também e ser aceito na broderagem da histeria masculina. Sem falar que a subtrama de Timothée Chalamet é completamente descartável, apesar de o evangelismo simbolizado por seu personagem falar ainda mais alto para os brasileiros.

O segundo ato é repetitivo e Deus Ex Machínico. A paródia ácida se torna caricatura rasgada e, como já referido acima, sem a real anarquia tipo Monty Phyton, parece subestimar o potencial de reflexão. Sem falar no total desperdício do ator Rob Morgan, o terceiro vértice da ciência ligado à interseccionalidade com questões raciais no filme. Porém, Dicaprio realmente está ótimo em sua atuação analisada isoladamente, até porque o roteiro sacrifica o desenvolvimento de todo mundo por ele, chegando a usar uns três grandes artistas como suas escadas.

É bom avisar que há duas cenas pós crédito, mas que só reafirmam a tônica da bobagem intencional, mesmo após a ótima seqüência do jantar aludindo ao cult “Impacto Profundo” de Mimi Leder. Não que tudo isso já não estivesse presente em obras anteriores de McKay… Seja nas que acertam ou erram o alvo. As piadas às vezes parecem o velho Saturday Night Live, datado, até porque o próprio famoso humorístico já se renovou inúmeras vezes, fazendo com que “Não Olhe para Cima” pareça sua versão ultrapassada de esquetes com perucas e maquiagens bufonas, sem sutileza ou ironia alguma.

Evidente que McKay às vezes acerta o alvo, como em “A Grande Aposta” (ao menos ao ver deste crítico), ou erre feio, como em “Vice” (cujas cenas pós crédito conseguem, inclusive, piorar ainda mais a interpretação do filme). Mas, aqui, tais cenas reforçam todas as intenções mais superficiais. Diminuem valores. A melhor (e única) frase da personagem de Mark Rylance com real valor no filme, referindo-se a estatísticas e probabilidades para DiCaprio em determinado momento da trama, é logo esvaziada pela reiteração dessas estatísticas para Streep com outro sentido, muito mais vão e escatológico — só pra citar um exemplo.

E o fato de um filme com muitas divergências talvez configurar caso de ser um “fenômeno” a ser estudado não significa que não possa ou até deva ser abarcado pelo crivo crítico — e que isso também não signifique que a pessoa esteja deixando de defender seu campo ideológico (mesmo que o filme seja da mesma “ideologia”, teoricamente falando). Muito pelo contrário, fenômenos possuem campos específicos de estudo da fenomenologia. Podemos analisar o filme pela sociologia, pela antropologia, pela psicologia ou etc… Mas a crítica de cinema, apesar de poder beber da fonte de todas estas referências acima, também possui sua própria fonte, advinda de uma história de linguagem e estética de obras e pensadores prévios. Impossível não mergulhar neles também. Um resultado não exclui o outro.

Mas, respeitosamente, é bom repetir que também seja compreensível que a catarse gerada especificamente no Brasil após a saturação desses dois anos amplie a experiência do filme nesse momento histórico específico. É muito difícil pra os brasileiros não lavar a alma com figuras parodiadas tipo Carluxo, Pazuello e até Bolsonaro, etc., ainda mais como agentes assumidos do Apocalipse. No entanto, também há de se afirmar que a nossa realidade dá de mil na história do asteroide neste filme, então nem contemplou tanto assim a catarse almejada pela analogia.

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