Esta semana a edição atual do Festival de Cannes repercutiu no mundo inteiro com pungência contemporânea, uma vez mais… Aliás, como de costume, afinal, é considerado o Festival internacional de maior porte na História (lembrando que o Oscar não é Festival, pois não exibe filmes, apenas premia o circuito, enquanto que Cannes exibe os filmes inéditos que seu Júri irá laurear). Pautas bombásticas costumam ser esperadas. No caso, 82 mulheres fizeram um manifesto na escadaria do glamoroso tapete vermelho defronte ao Palais du Festivals na Croisette, incluindo 3 ícones de diferentes representações: a atriz Cate Blanchett, a diretora francesa Agnès Varda de 89 anos (cofundadora da Nouvelle Vague), e a diretora americana Ava Duvernay (atualmente a cineasta negra mais poderosa do mundo). Foi lido uma declaração para os maiores veículos de imprensa do mundo pedindo por equiparação salarial entre homens e mulheres, e reivindicando mais representatividade em Cannes, visto que apenas 82 filmes dirigidos por mulheres concorreram à disputada Palma de Ouro até hoje, contra mais de 1.600 filmes dirigidos por homens. O próprio diretor do Festival, Thierry Frémaux reconheceu na coletiva do primeiro dia que as regras precisarão mudar para abarcar as novas demandas afirmativas necessárias, refletindo sobre o fato de entre os 21 longas-metragens na competição principal deste ano apenas 3 são dirigidos por mulheres. E ontem mesmo, na quarta-feira do dia 16 de maio, cineastas e atrizes negras fizeram mais um protesto junto com o lançamento do livro “Noire n’est pas mon métier” (“Negra não é a minha profissão”), para mostrar que “o imaginário das produções francesas ainda está cheio de clichés herdados de outros tempos”, segundo a actriz Aissa Maiga.

Mas o que isso tudo tem a ver com a coluna de novos clássicos no Cinema Para Sempre desta semana? Tudo. Estamos falando sobre “O Piano” de Jane Campion, o único vencedor da Palma de Ouro dirigido por uma cineasta mulher até hoje, em 1993, prêmio que ainda incorreu na raridade de ser dividido com “Adeus, Minha Concubina” de Chen Kaige. Jane Campion já havia realizado a obra-prima “Um Anjo em Minha Mesa”, e o sucesso de seu “O Piano” ultrapassou as raias da Croisette, sendo indicado a 8 Oscar em 1994, no que levou as estatuetas douradas de melhor atriz para Holly Hunter (“Além da Eternidade”, “Aos Treze” e “Os Incríveis 1 e 2”), atriz coadjuvante para Anna Pequin (uma das mais jovens atrizes a ganhar o Oscar, muito antes da fama por “True Blood” e “X-men”), e roteiro original para a própria Campion. A trama se passa no período de 1850, com a colonização imposta pelos europeus ao povo nativo neozelandês, onde a personagem de Holly Hunter vai ser levada com sua filha pelo marido (Sam Neill de “Jurasic Park”) para este lugar remoto, paradisíaco e ao mesmo tempo assustador para quem não é de lá. E este encontro de civilizações irá gerar tensões dentro e fora do casamento, sobre a emancipação não apenas de uma mulher, como da terra também, conforme ela vai conhecendo melhor os habitantes da Nova Zelândia, tanto o povo nativo quanto os colonizadores já naturalizados (papel de Harvey Keitel, que serve de ponte entre os dois mundos, personagem que cai como uma luva para este que é um dos atores-assinatura da filmografia de Martin Scorsese).

Uma história contada de forma tão literária através da construção de imagens que até parece ter sido adaptada de um livro, mérito da diretora/roteirista. Isto porque livros costumam possuir descrições mais amplas de locações que vão da natureza ao ar livre a cenários interiores com decoração de época, todos reconstituídos em alta precisão, mas não como peças soltas de embelezamento da tela, e sim como exteriorização dos pensamentos e emoções dos próprios personagens. Por exemplo, uma praia deserta pode ser a solidão ou completude de alguém que se encontra em si mesmo; ou uma floresta muito densa pode significar um labirinto ou um cerco onde está o momento dos personagens. Não que se trate de um romance, e sim talvez um ati-romance, pois reluta a entregar a narrativa para maniqueísmos passionais, focando com sobriedade o triângulo amoroso que irá se formar, com uma extrema sensualidade sutil e interiorizada, diga-se de passagem.

Hoje um clássico, “O Piano” foi um dos primeiros filmes a colocar a Nova Zelândia e suas tradições nativas em primeiro plano para uma obra de grande distribuição e visibilidade, além de construir personagens femininas fortes para suas atrizes centrais, não à toa levando os dois respectivos Oscar de atuação. Ainda conseguiu desconstruir a masculinidade tóxica de seus coprotagonistas interpretados por Sam Neill e Harvey Keitel, que enlouquecem em torno de uma firme e obstinada mulher que mesmo sem pronunciar uma palavra, é o núcleo de toda a potência dramática. Não que a personagem de Holly Hunter seja muda, na teoria ela não é, mas ela não fala desde a infância, apenas escuta a voz de sua mente (“um talento próprio”, dizia o pai dela), que de certa forma é uma metáfora para falar do silenciamento social das mulheres em um mundo predominantemente calcado em formações institucionais machistas.

Mas não é apenas metafórico o silêncio verbal da personagem de Holly Hunter, Ada, e sim uma ferramenta útil de instrumentalização do roteiro, já que ela irá se expressar através da música de seu piano, outro personagem crucial do filme, mesmo que inanimado e trazido à vida na trilha de Michael Nyman. Quer dizer, isto para além de figurar no título e ancorar também a suntuosa fotografia de Stuart Dryburgh, acentuando os tons de azul e verde contra a cromática cinzenta e enevoada com a qual os colonizadores vêem a terra que lhes é estranha, o instrumento musical em questão vai literalmente gerar um dos frames mais famosos da história do cinema, que é aquele piano de cauda atolado na praia, sob as ondas embebidas a seus pés. A imagem de desolação e simultaneamente de autodescoberta da personagem de Hunter ao lado daquele piano na areia molhada é um dos quadros mais marcantes da década de noventa nos cinemas. Isso sem falar que se tornará o principal obstáculo para que a protagonista retome a sua voz perdida, não precisando mais da muleta dos teclados para se comunicar, o que é deixado para a imaginação do espectador, como tudo no mistério das pequenas lacunas que só a magia do cinema pode deixar a serem preenchidas por nós, através do final em aberto. Cabe a cada um sair da sessão do filme e decidir se aquele final seria possível para as mulheres, ainda mais naquela época, ou se é tudo uma alucinação ou imaginação, especialmente a partir do momento em que todos os personagens estão vestidos de branco entre cortinas esvoaçantes.

Esta é uma obra que permanece conosco muito depois de assistirmos, dando vontade de regressar aquele mundo fantástico criado pela diretora muitas mais vezes. Não à toa, foi necessário uma cineasta mulher para criar arquétipos tão complexos quanto necessários na (des)construção de gênero, sexualidade (há uma famosa cena de “dedada” no filme, o que em geral é inconcebível para um cineasta masculino cogitar), e até de territorialidade, assumindo uma culpa europeia colonizadora que raros filmes já abordavam em 1990. Nos Oscar, só não levou todos os prêmios a que foi indicada porque competiu de forma desproporcional com a mega produção de Steven Spielberg, “A Lista de Schindler”, onde o já famoso cineasta de “Tubarão” e “ET – O Extretarrestre” enfim assumia suas raízes judaicas na telona e expiava décadas de dor solidária como raramente havia se visto no cinema (talvez apenas em “Noite e Neblina” do francês Alain Resnais), o que impactou bastante a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, ou seja, Hollywod.

Já em Cannes ela saiu coroadíssima, e é por isso que precisamos de mais pluralidade nas representações internacionais, para que nos pontos cegos de uma premiação ou outra, possamos encontrar lampejos de originalidade e vanguarda que refrescam o que se está sendo produzido no período, e depois será absorvido pelo sistema para gerar ainda mais novidades. – Vide o ‘boom’ de sucesso da representatividade trazido com filmes como “Mulher Maravilha” de Patty Jenkins e “Pantera Negra” de Ryan Coogler, que mesmo sendo blockbusters conseguiram transcender a arte com identificação afirmativa de gênero e raça. Tanto que o próprio Ryan Coogler deu uma masterclass em Cannes este ano, como parte destes movimentos inovadores citados acima, onde ele falou sobre o reconhecimento racial na construção de linguagem e prometeu tentar fazer um spin off de “Pantera Negra” totalmente focado nas personagens mulheres como o exército Dora Milaje. Representatividade importa! Jane Campion que o diga, tendo infelizmente ainda a única obra dirigida por uma cineasta mulher a ganhar a Palma de Ouro de melhor filme em Cannes. Será que este ano talvez mude o jogo? (burburinhos apontam possibilidade para “Lazzaro Felice” de Alice Rohrwacher (de “Corpo Celeste” e “As Maravilhas”). Veremos…

Trailer de “O Piano”:

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