Entrevista com cineasta Lucrécia Martel

“Zama”: novo filme da aclamada diretora argentina está em cartaz*

por Filippo Pitanga

*Originalmente publicado em 02 de abril de 2018

“Existe essa matriz que aplaca a todos, homens e mulheres. No sentido de que gera uma espécie de possibilidade de felicidade muito pequena (se não trabalharmos isso).” – Lucrécia Martel

Entrevista com Lucrécia Martel, uma das maiores cineastas do mundo, quiçá a mulher mais importante e vanguardista a dirigir filmes em toda a América Latina, não apenas pela filmografia como pela pessoa por trás da filmografia, e por toda uma história de cinema que nos representa. E em relação a isso, a sétima arte só tem a agradecer por toda essa história. – É válido mencionar que a seguinte entrevista foi feita sob uma luz de estudos focados em mulheres na direção pela história do cinema.

(Leia a crítica para o filme clicando aqui )

Almanaque Virtual: Sobre “Zama”, cuja forte impressão permaneceu desde que o Almanaque Virtual conferiu na primeira exibição durante o Festival do Rio 2017, por ser uma narrativa épica, histórica e uma adaptação literária, também de um grande livro na história argentina, como Lucrécia enxerga esta adaptação perante a obra dela como um todo? O que ela veria do avanço da inovação e do olhar, e por conter um forte protagonista masculino desconstruído?

Lucrécia: Muitas vezes me perguntaram como, logo agora, numa época que está tão vivo o cinema feito pelas mulheres, nos pusemos a filmar uma obra sobre um homem. Mas me parece que nunca penso muito ‘no protagonista’ ou ‘na protagonista’ porque para escrever o sistema se deve pensar como se forma o ‘monstro’, e no ‘monstro’ não tem importância o gênero. O que tem importância no ‘mosntro’ é sua particularidade, certa luz que tem no mundo… Uma coisa inerente a toda a espécie humana, e o que acho tão interessante é isso, por que nos interessa gente tão particular. Ao que me parece, em todo caso, se quisermos pensar em um ponto de vista mais de gênero, me parece que devemos tanto refletir e ver e civilizar não apenas as questões das mulheres, mas como as armadilhas que estão nos homens, e isso é algo que compartilhamos. Às vezes me dá a impressão de que quando falamos das preocupações sobre as mulheres não se tem necessariamente a ver com nossa história particular de mulheres, senão com essa matriz que aplaca a todos, homens e mulheres. No sentido de que gera uma espécie de possibilidade de felicidade muito pequena (se não trabalharmos isso).

Almanaque Virtual: Partindo das palavras citadas por Lucrécia, o ‘monstro’ e a ‘matriz’, apesar de parecer um filme mais antropológico, talvez seja seu filme mais psicológico – quanto maior o campo histórico, mais específico se torna o personagem e o indivíduo humano. E apesar de as mulheres serem coadjuvantes, elas permitem a triangulação desta psicanálise (como no caso do protagonista). Ele não conseguiria ser desconstruído sem as mulheres no seu entorno. Lucrécia, você acreditaria que essa história do indivíduo possa significar uma matriz ainda hoje para seus personagens, no momento atual, presente, na Argentina?

Lucrécia: Para mim seria muito difícil fazer uma película de qualquer classe se não houver um diálogo com o presente. Tomo como pressuposto que penso a relação com a realidade e com esse momento de…, penso que não com o problema de hiper-atualidade, não com os problemas regulares e diários, porque tudo isso, este oportunismo de cinema, caduca muito rápido. E há sim problemas que temos em nosso continente e são praticamente iguais, e nesses dias passei falando da situação de exclusão, como cidadãos, excluídos de todos os benefícios de cidadão das comunidades indígenas, e também a situação de exclusão de inúmeros benefícios da comunidade e da cultura negra. Me dá a impressão de que há coisas que persistem e que passam os ciclos e passam os sistemas, e os tipos de administrações da coisa pública e esses males persistem, e essa coisa me parece que o cinema tem uma oportunidade de fazermos, de permitirmos algum tipo de reflexão sobre isso.

Almanaque Virtual: A partir desta última colocação, talvez seja seu filme que mais evoluiu sua técnica e seu cuidado com o som, e estávamos falando de seu aspecto psicológico e há vários nichos neste filme como o dos personagens indígenas, como o dos personagens escravos alforriados, e cada um desses nichos têm um aspecto de som muito próprio. É só a gente entender onde está o núcleo da história que a identificação sonora começa a processar camadas. Como foi trabalhar esses diferentes núcleos de som, especialmente ao ar livre, com muitas cenas externas em locações, como um grande salto para a filmografia de Lucrécia?

Lucrécia: Não penso a partir do aspecto psicológico, porque não posso pensar a partir deste lugar, porque se respeitar demais o aspecto psicológico parece que serve mais a fazer terapia e não serve para se escrever película. Essa consideração eu não tenho para escrever ou para filmar, mas sim, me importa muito, e não sei até onde logrei êxito, o fato de poder tentar me colocar no lugar dos outros. Mas me importa muito não facilitar que os personagens sejam medidos como gente é medida completamente; tratar de que alguém que completa um trabalho, que pode ser pequeno ou abusivo, que não os tenha como imagem de sua missão por completo (dentro do filme). Isso foi uma coisa que me preocupou muito, sempre que tentei lograr êxito quando podia lograr, mas foi uma coisa que me preocupou. Quanto ao som, a ideia me parece algo parecido como digo respeito à imagem de tratar de todos os lugares comuns das películas de época, como o fogo, as velas, os sons como de natureza. E usei muitos sons que foram mais eletrônicos.

Almanaque Virtual: Dentro deste espectro, percebe-se também uma utilização consciente do silêncio. Não o silêncio na ausência do som, mas na escolha consciente pelo preenchimento dos tempos pelo silêncio. Como, por exemplo, que apesar de toda sua potência e autoridade vai sendo silenciado pelo meio ao redor. E as duas personagens das mulheres, uma que muito fala e usa a palavra para disfarçar a relação de poder, e a outra empregada desta que não fala, mas que no fim subverte este poder. Então estes silêncios parecem ter sido pensados desde o roteiro, na construção de personagem. Foi desde o roteiro ou também se deu um trabalho junto com os artistas para pensar nesta consciência do silêncio no preenchimento do espaço sonoro?

Lucrécia: Quando estou definindo um personagem, quando estou escrevendo me importa muito que cada personagem tenha um sistema de fala; uma forma de…não de ‘como falar’, senão de como usa a linguagem, de para quê a usa. Não de quais palavras dizem, ou de como as dizem, e sim de como funciona isso. É, então, neste sentido, que cada personagem, seu som e seu não-som, para mim, se tornam uma manifestação importante de como exercem seus pequenos domínios. Por exemplo, a personagem da atriz Mariana Nunes, que não fala, atrai o personagem de Zama para uma armadilha, para levá-lo para lugares que ele não queria ver. Então me parece que os personagens que falam não necessariamente são os que exercem o poder em cena. Assim como com o personagem de Matheus Nachtergaele e o seu silêncio, estando presente desde o princípio, pois era importante o perseguido fazer parte da força perseguidora, convertendo a sua presença em muito mais forte do que poderia se cogitar ser.

Almanaque Virtual: Quanto às paisagens, apesar de ser um filme de época, as paisagens inovam uma filmografia argentina que não costuma trabalhar tanta diversidade geográfica, quase como se redescobríssemos uma parte de nosso continente através do filme. Da história que esses personagens trazem da sua geografia. Como foi trabalhar com essas locações e colocar o roteiro em prática no seu filme que mais se utiliza de cenas externas, onde os personagens dão contornos ao relevo exterior?

Lucrécia: Para mim era muito importante filmar nestes lugares, e eram lugares muito difíceis de se filmar, e grande parte era cercada de água. É como uma imagem da Argentina que não é só o fato de as pessoas não conhecerem tanto, mas sim que a cultura argentina está muito centrada em Buenos Aires, e qualquer outro território que se apresente vai resultar numa novidade como imagem da Argentina. Porque tudo o que conhecemos está em um entorno de Buenos Aires. Importava muito que esta paisagem pudesse representar de alguma maneira este conflito do grupo de personagens, que em cada caso era um grupo. Por exemplo, isso está representado na cena final que foi um lugar muito muito difícil de filmar, e foram necessárias muitas semanas, porque era inacessível, e importava muito terminar em um território que não fosse firme como a terra, e sim num lugar líquido (se referindo ao pântano onde o personagem principal está cercado no final, como o emaranhado que ele próprio se colocou e o engolfa por fim – em contraste com as praias do início que são chegadas e partidas, mas ao mesmo tempo a barreira que o protagonista não conseguia transpor).

Almanaque Virtual: Se puder falar um pouco do próximo projeto.

Lucrécia: Estou escrevendo, como sempre, algo todo o tempo… Vou escrevendo coisas e anotando, mas nunca sei se vai se transformar em algo…

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