Triunfo da esquerda e aproximação de classes põe em xeque o velho “Você é como se fosse da família”

Originalmente publicado em 26 de agosto de 2015

As pessoas fazem filmes com o tutano daquilo que mais lhes toca. Assim como quem vai ao cinema tem de ser igualmente tocado. Na filmografia brasileira impera a temática das disparidades sociais que são o que nos afeta mais. Alguns nichos de desigualdade já se individualizaram com o tempo, como o gênero ‘favela movie’ e a criminalidade. Agora urge se falar da ‘doméstica movie’, principalmente desde que a categoria profissional começou a ganhar mais direitos, tanto jurídicos quanto reconhecimento social de igualdade, fruindo dos mesmos locais, serviços e produtos que a elite. E isto criou certo incômodo na hierarquia pré-estabelecida, quiçá naquele arcaico jargão que os patrões sempre disseram: ‘Você é praticamente da família’. Após incursões no tema como “Doméstica”, “O Som ao Redor” e “Casa Grande”, agora chega ao circuito nacional o esperado “Que Horas Ela Volta?” dirigido por Anna Muylaert (de “É Proibido Fumar”).

Tratando do eterno amálgama de classes triangular entre patroa (a diva Karine Teles de “Riscado”), doméstica (a já premiada por este papel, Regina Casé) e o filho da primeira criado pela segunda, o filme agrega um quarto elemento que desestabiliza os outros, ao mesmo tempo que os aproxima: Jéssica, a filha distante da empregada, que após 10 anos sem falar com a mãe se vê obrigada a se hospedar na casa dos patrões, seguindo (ou não) regras sob as quais jamais precisou se condicionar antes. O mais importante de focar é que o filme não gasta tempo vitimizando a personagem de Regina Casé ou vilanizando a de Karine além da cota de um mal necessário, pois volta e meia associa a negligência proporcional de ambas com seus respectivos filhos. As mesmas carências. Não há “herois” ou “vilões”, só mútua carência humana nas diferenças sociais, o que mais do que nunca as aproxima. E Jéssica, encarnada pela promissora novata Camila Márdila, segura bem as pontas para não deixar de gerar empatia com o público, senão correria o risco de perder o fio da crônica do resto do elenco, cujos personagens desmoronam ao seu redor, caso antipatizássemos com ela.

A experiente diretora Anna Muylaert brinca o tempo inteiro com o cenário, por exemplo, com escadas e portas que separam os ambientes entre empregadores e funcionários, tal qual os cults “Assassinato em Gosford Park” e “Downton Abbey”, mas desta vez encurtando-os, mesmo que sempre sombreados, como se independente de as classes se aproximarem, ainda estão distantes da luz em uma justiça equiparada. As próprias marcações dos atores em cena respeitam uma ferrenha crítica na forma como se dispõem na tela: quem está sentado quando outro está de pé, ou quem está numa posição dominante ou submissa. O patrão desacreditado no casamento é artista e tem em comum com a filha da empregada a paixão pela arquiteta, já o filho vai prestar vestibular assim como Jéssica e isto gera intrigas e novos laços opostos na família, fazendo com que os estudos, os quadros ou plantas da maravilhosa locação da casa onde tudo se passa importem muito para desmistificar a subjetividade na esquematização dos estereótipos. Vem daí a dificuldade de equilíbrio entre a dignidade de cada personagem e o respeito mútuo, pelo que ascende a prodigiosa atuação de Regina Casé, em mínimos detalhes de expressão cômico-dramática a brincar com os signos e gerar inúmeras cenas de delicioso constrangimento e catarse total para o deleite do espectador. Já diziam os grandes comediantes que o humor pode fazer críticas mordazes maiores do que o drama às vezes, pois há uma liberalidade com o riso para se falar sobre qualquer tabu, mesmo que proibido. E esta é a coragem do filme. De ir além do já trabalhado em obras estrangeiras sobre o tema como “A Criada” e o também divino “Quando Meus Pais Não estão em Casa”, pois o tom aqui irreverente sem deixar de ser respeitoso cria mais do que um retrato social, e sim um reflexo convidativo para que todos possam se autoanalisar naquelas situações ainda que hilárias.

Com cenas já antológicas, tensas e afetivas, como a da filha e depois a da mãe na piscina dos patrões, ou a das xícaras de café, o filme vem merecendo os prêmios que arrebatou no Festival de Berlim de melhor filme pelo público e em Sundance dividindo o prêmio de atriz entre Casé e Camila Márdila, tornando-o aposta quase certa para figurar no Oscar de filme em língua estrangeira 2016.

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