O documentário “Escrita Íntima” do diretor português João Mário Grillo estreou nos cinemas brasileiros ontem, dia 9 de junho. Tivemos a oportunidade de fazer uma entrevista com o diretor sobre o documentário que fala sobre o casal de artistas  Maria Helena Viera da Silva Szenes e Arpad Szenes. O casal europeu veio morar no Rio de Janeiro em meio a Segunda Guerra Mundial e contribuiram muito à cultura carioca. E para saber mais sobre essa produção, confira a entrevista feita por Andréa Cursino.

 

  1. Cinema Para Sempre: O que motivou a fazer um documentário sobre Maria Helena Vieira Da Silva e Arpad Szenes ?

João Mário Grillo:  O projeto do filme começou por resultar de um desafio que me foi lançado pelo Diretor da Fundação Arpad Szenes – Vieira da Silva, em Lisboa, para pensar na possibilidade de construir um filme, a partir da correspondência entre os dois artistas. A Fundação estava, na altura, a realizar uma exposição sobre essa correspondência, exposição essa que resultou de um longo trabalho de investigação em torno do arquivo deles. A ideia entusiasmou-me: em primeiro lugar, por sempre ter sido muito sensível às possibilidades dramatúrgicas oferecidas pela troca de correspondência, no sentido em que uma carta é muita coisa ao mesmo tempo (uma relação com o outro, mas também envolvendo dimensões confessionais, sentimentais, reflexivas e sensoriais, que a comunicação atual e imediata não possui); por outro lado, porque encarei as cartas como o princípio ou o pretexto de uma exploração muito mais vasta, onde achei ser possível captar a essência da interioridade de ambos os artistas e assim reapresentar as suas obras, de forma simultaneamente mais ampla e intimista. É claro que em todo este processo sempre existiu a vontade de experimentar as capacidades do cinema, no sentido da construção de um fluxo onde, através da montagem, se pode passar de uma carta para uma pintura ou um desenho, de uma fotografia para uma paisagem sem que o espectador dê conta que está a ver coisas diferentes, porque elas são diferentes em espécie mas decorrem, naturalmente, de uma mesma identidade, de um mesmo propósito. Nesse sentido Escrita Íntima pode ser considerado, mais do que um documentário, um ensaio experimental.

 

  1. Cinema Para Sempre: A co-produção entre Brasil e Portugal foi pensada antes, ou surgiu naturalmente por conta da trajetória do casal de artistas?

João Mário Grillo: O Brasil é uma geografia que, na história da Vieira e do Arpad que ocupou um lugar muitíssimo importante, a ponto de se poder dizer que há uma Vieira e um Arpad antes e depois do Brasil. Foi a descontinuidade fundamental; também, porque quando eles partem para o Brasil, em exílio, durante a 2ª Guerra (pelo facto do Arpad ser judeu), na verdade eles não sabem se algum dia voltarão à Europa ou se a Europa, ela própria, voltará a existir. Então, o Brasil sempre esteve pensado estar presente no filme, embora à partida eu não soubesse como, ou que meios iríamos ter para que isso acontecesse. Foi então que surgiu a oportunidade de o filme se candidatar ao edital luso-brasileiro de co-produção, com a Gullane como produtora associada. Tendo o filme ganho esse edital, foi então questão de conjugar esforços e definir uma estratégia para tornar possível essa filmagem no Brasil. Isso foi decisivo para o filme, até porque o segmento brasileiro foi aquele que começámos por filmar. Começámos o filme no Rio e acabámo-lo em França, tendo pelo meio um longo período de filmagens em Lisboa.

 

  1. Cinema Para Sempre: No documentário mostra que ele é húngaro e ela é portuguesa. Eles viveram em Lisboa, Paris e depois no Rio de Janeiro, mas enquanto Arpad se adaptou na vida carioca, Maria Helena era reclusa e não tinha afinidade com a cidade, deixando claro que seu amor e pertencimento era Paris. Enquanto Arpad deixou seu legado ensinado sua arte para cerca de 200 alunos, influenciando novos pintores, qual foi o legado de Maria Helena ?

João Mário Grillo: A Maria Helena nunca se encaixou perfeitamente na ecologia da arte brasileira do período, que era muito referenciada a artistas como o Candido Portinari, por exemplo, empenhados na criação de um idioma próprio, nascido da própria história do Brasil e, muito em especial, reforçando os laços com uma população e uma cultura autóctones, em rutura com a ideologia e os preceitos colonialistas. Neste contexto, a Maria Helena da Vieira da Silva sempre se pensou como uma artista europeia, vivendo uma profunda nostalgia de Paris e dos seus círculos artísticos e culturais. Não se pode assim falar de um “legado Maria Helena” propriamente dito, embora ela tenha aceite algumas encomendas institucionais, como, por exemplo, os azulejos da Escola Agrícola do Rio de Janeiro, que eu espero, um dia, possam ser devidamente restaurados. Pode sim falar-se de um legado do Brasil na Maria Helena, porque embora todo o sofrimento que ela experimentou no Rio, toda a solidão também (a solidão do “Bicho-Lua”, de que o Paulo Herkenhoff fala no filme), foi no seu período brasileiro que ela pintou obras verdadeiramente essenciais: “O Desastre ou A Guerra”, “História Trágico-Marítima” ou “A Partida de Xadrez”.

 

  1. Cinema Para Sempre: Por que a trilha sonora é tão sombria, melancólica e fúnebre?

João Mário Grillo: Peço desculpa, mas, na verdade, não posso responder porque não tenho essa opinião: não me parece que as composições do Luigi Nono sejam fúnebres ou sombrias, por exemplo, nem sequer, muito menos, a Bachiana, do Villa-Lobos… Há sim, bem no início, na sequência do cemitério, um fragmento do “Canto de Amor e Morte”, do Fernando Lopes-Graça, mas isso era irresistível, porque casa muito bem com a totalidade do que o filme é, também ele, à sua maneira, um “canto de amor e morte”…

 

  1. Cinema Para Sempre: Como foi a escolha de quem seriam as pessoas a dar depoimentos no documentário?

João Mário Grillo: Foi uma escolha natural, porque julgo estarem no filme as melhores vozes públicas capazes de falar hoje sobre o que foi a vida e a obra da Vieira da Silva e do Arpad Szenes, e também sobre as suas várias e importantes implicações. Haviam muitas outras pessoas, sim, muito interessantes, também, muitas delas, no entanto, já desaparecidas, infelizmente. Correspondem ao período do filme “Ma Femme Chamada Bicho”, do José Álvaro de Morais, que é um filme de 1978 – produzido ainda em vida de ambos os pintores – e um pedaço essencial do arquivo com que trabalhei.

 

  1. Cinema Para Sempre: Qual o legado que o casal deixou para a cultura brasileira nos dias de hoje?

João Mário Grillo: Não consigo responder a esta pergunta, a não ser dizendo que o filme se pensou como parte desse legado (que continua), sendo uma consequência direta dele. Nesse sentido, o filme é a prova que o legado existe e que diz respeito não só aos portugueses e aos brasileiros, mas, no fundo, ao mundo. É isso que faz a universalidade da arte. Hoje, há pintura da Vieira e do Arpad pelo mundo todo: em museus, mas também em casa ou em fundações de colecionadores privados.

Cinema Para sempre: Agradecemos muito a entrevista e a atenção prestada para nos falar um pouco sobre “Escrita Íntima”. Desejamos muito sucesso ao filme! Que ele possa circular pelo mundo mostrando sua história. 

 

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