Retrato cruel da fama na Terceira idade

Quando Robert Aldrich convidou Joan Crawford e Bette Davis para protagonizar este conto lúgubre sobre o declínio da fama, ele sabia o que estava fazendo. Na época, as duas atrizes, arquiinimigas na vida real, encontravam-se praticamente no ostracismo (em 1962, Bette chegou a colocar um anúncio nos classificados procurando emprego), portanto nada mais oportuno e perspicaz do que chamar dois monstros sagrados do Olimpo Hollywoodiano para um duelo triunfante. Na verdade, Aldrich não queria apenas contar uma história que falasse de decadência. Ele queria mostrá-la, encarnada na pele das próprias atrizes. O título também pode ser encarado como uma irônica metáfora ou brincadeira com as iniciais das duas atrizes (Bette = Baby e Joan = Jane) dando um significado maior ao nome do filme (O que aconteceu com Bette Davis e Joan Crawford?)

Baseado na novela de Henry Farrel e com o roteiro adaptado por Lukas Heller (O Vôo da Fênix e Com a Maldade na Alma) o filme ironiza Hollywood e seu declínio, ridiculariza as glórias do sucesso e mostra os estragos que a fama pode fazer num ser humano quando este não se encontra mais em evidência. É basicamente um tratado sobre a demência e a deterioração mental.

O filme tem dois interessantes prólogos estruturais. O primeiro passa-se em 1917 ao som de uma criança chorando. Este detalhe é uma pista que Aldrich oferece ao espectador que serve para criar um sentimento de compaixão aflitiva. Somos então apresentados a Baby Jane, uma criança prodígio insolente que fazia sucesso no teatro de variedades, bem comum na época. A pequena Baby Jane (Julie Alred) é extremamente mimada pelo pai Ray (Dave Willock), uma figura boboca e igualmente infantil. Através da patética canção “I wrote a letter to daddy” (cujos acordes serão utilizados para a trilha incidental durante todo o filme) percebemos traços de uma relação doentia e de extrema dependência.

O segundo prólogo passa-se em 1935. Dezoito anos depois, o quadro é completamente diferente embora as irmãs continuem em posições desiguais.O cinema adquire uma importância maior e a aura infantil do início, cede seu lugar para um cinismo misturado com doses de sensualidade, onde dois executivos assistem, numa cabine, um trecho de um filme medíocre estrelado por Baby Jane Hudson (Bette Davis). Os dois personagens, enquanto passeiam pelas alamedas do estúdio, relatam a situação atual das irmãs enquanto olham para o traseiro dos figurantes que passam entre eles. Este código narrativo é extremamente importante para determinar a situação das duas personagens, pois assim ficamos sabendo que Blanche, atualmente uma atriz de cinema de grande sucesso, protege sua alcoólatra e já decadente irmã Jane, obrigando os estúdios a colocarem em produções baratas.Em seguida, há um brusco corte seco para uma limusine. Espertamente, Aldrich não mostra seus personagens e prefere alternar primeiríssimos planos do volante, do freio de mão e do cano de descarga em funcionamento. O acidente (ou incidente?) acontece ao som de gritos e passos fazendo deste jeito um retorno ao choro infantil do início do filme. Os letreiros são enfim exibidos ao som dos acordes dramáticos de Frank de Vol.

Ao voltar à história, Aldrich cria um significado elíptico ao iniciar a trama com um letreiro escrito “Ontem”. Deste jeito sabemos que a história acontecerá em um espaço de tempo entre o ontem e hoje (ou o agora; enquanto assistimos). Na verdade, o que o diretor quer dizer é evidente: Brigas em família e disputas entre irmãs é algo tão atemporal que pode acontecer em qualquer época. A partir daí, a televisão tira todo o espaço do teatro e do cinema aprisionando os sonhos dos personagens que padecem de uma grande frustração.

Bette Davis faz a Baby Jane do título. Uma boneca envelhecida que acredita que um dia, voltará aos palcos para cantar canções singelas como uma adolescente a fim de contrabalançar os infelizes anos de sofrimento e azedume ao lado da irmã aleijada. A atriz utiliza todos os recursos corporais para interpretar uma mulher amargurada, infeliz e desgostosa com o mundo. Sua interpretação, indicada ao Oscar de melhor atriz daquele ano, é visceral e intuitiva deformando o corpo para dar feitio a um personagem derrotado que insiste em permanecer uma eterna princesinha. Os passos arrastados, a coluna caída, e os olhos assustadoramente abertos com bolsas flácidas transformam a atriz em uma criatura extravagante e bizarra.

Em contrapartida, Joan Crawford, a “grande rainha da Metro” encarna a sofredora Blanche Hudson. É um papel difícil para uma atriz acostumada a ser “femme fatale” e sua atuação é irritantemente introspectiva mostrando uma faceta bem diferente dos papéis que interpretou. E é nesse jogo de dualidades que Aldrich consegue retirar suco do bagaço.

A equipe técnica é um capítulo à parte: A fotografia em P&B de Ernest Haller (Acordes do Coração) captura os rostos das atrizes transformando-os em uma máscara horripilante repleta de rugas e olheiras e faz um excelente jogo de sombras dentro da mansão. O figurino premiado de Norma Koch (The Lady Sings the Blues) é outro elemento que contribui para a composição da história, amplificando a sensação de derrota dos personagens.

O que aconteceu com Baby Jane? (What Ever Happened to Baby Jane?) talvez não seja um filme perfeito, mas é uma obra atualíssima que fala da terceira idade de uma forma cruel e pungente. O filme é repleto de referências ao sistema hollywoodiano escancarando como a fama e a decadência são facetas da mesma moeda.

  • O que aconteceu com Baby Jane? (What Ever Happened to Baby Jane?)
  • Eua, 1962. 134 min. – Direção: Robert Aldrich  
  • Com: Bette Davis, Joan Crawford e Victor Buono,
    Maidie Norman, Julie Allred, Dave Willock

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