Nos últimos tempos, estou numa vibe meio França anos 50/60. Semana passada assisti ao Meu Tio e ao Playtime do Jacques Tati e hoje pela manhã assisti ao Pickpocket do Robert Bresson. A princípio não sabia exatamente o que procurava com esses filmes, mas hoje tive um quê de iluminação. O sentimento geral dos anos 50 franceses é bastante similar ao que vivo hoje em dia.

Tanto o Meu Tio e Playtime como o Pickpocket tratam de pessoas fora de sintonia com seus ambientes. O Monsieur Hulot é um anacronismo. Enquanto o progresso e a mecanização (de métodos, pessoas e relações) avança, ele os ignora para viver com seu sobrinho diversas aventuras, tentando criá-lo para um mundo mais humano do que aquele que seus pais lhe apresentam. Michel, o batedor de carteiras de Pickpocket, claramente marginalizado, justifica seus crimes pela superioridade daqueles que conseguem escapar das leis num mundo, como ele diz, “de ponta à cabeça”.

Hulot e Michel. Sujeitos perigosíssimos

Michel e Hulot, distraidamente, passam ao largo da sociedade que os rodeia. Seus objetivos diferem da multidão da qual se aproveitam e seus atos, inocentes ou não, são uma forma de sabotar o Status Quo, como na famosa cena de Meu Tio em que Hulot transforma metros e metros de mangueira em linguiças falsas ou quando ele se perde nos labirintos físicos e conceituais do escritório moderno em Playtime.

Contudo, eles, se não totalmente, são parcialmente mal sucedidos em suas campanhas de terror. Michel termina preso e Hulot é “exilado”. Mesmo assim, longe das sociedades que os puniram, eles deixam de herança um pouco de esperança no segurar de mãos de pai e filho em Meu Tio e na tentativa de beijo por entre as grades em Pickpocket.

Não é muito, mas já é alguma coisa.

E o que diabos isso tem a ver com a gente? Atualmente, oprimidos pelo ChatGPT e outras ferramentas de mecanização do trabalho, ser tornou imperativo resgatar a humanidade nas relações pessoais e laborais.

É coisa difícil de se fazer. Nos últimos séculos, o trabalho se distanciou da nossa identidade a largos passos. Enquanto isso, nossas relações pessoais, mediadas por algoritmos, se tornaram ao mesmo tempo agressivas e vazias. Construímos inclusive uma identidade pessoal e uma profissional. Paramos de ser o que fazemos, o que fazemos perdeu o significado, e nosso trabalho se tornou um simples ganha pão.

Infelizmente, ou não, a perda de privacidade provocada pelos meios de comunicação botou essas duas “não-identidades” (não pode haver mais de dois critérios de igualdade) em cheque e, pelo bem da sobrevivência, o que temos visto é a “identidade” pessoal dar lugar à profissional. Tudo pelo sucesso. Afinal o que é isso mesmo?

Tudo nos conformes. O “sucesso” ao preço da individualidade.

O que nos espera no futuro? Deixaremos de ser humanos e nos tornaremos as máscaras que o mito do sucesso profissional nos impõe? Viveremos num 1984 corporativo onde a tirania do trabalho sem significado punirá tudo e todos que são diferentes? Espero que não, mas podem contar que essa luta, tenha o resultado que tiver, será dura. Se de um lado eles tem a Você S.A., a Exame, o Linkedin, os livros de auto-ajuda e as biografias de milionários, estamos bem preparados com Michel, Hulot e uma série de adoráveis facínoras revolucionários em nossas tropas.

Agora empolguei. É a hora de ouvir La Marseillaise.

Onde assistir:

Mon Oncle – Globoplay
Pickpocket e Playtime – (fora do Streaming, já falei pra vocês que o streaming não é essas coisas todas)

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