Logo após a Segunda Guerra, começou a aparecer com frequência uma série de peças de teatro com contornos surrealistas onde sempre havia questionamentos sobre a falta de sentido da vida humana. Inspirado pela filosofia existencialista, esse conjunto de peças passou a ser nomeado pelo crítico Martin Esslin de “Teatro do Absurdo”.

Alguns teóricos argumentam que o horror da Segunda Guerra, perpretado pelo governo nazista, colocou em cheque uma série de valores religiosos e tradicionais que jogaram por terra todas as nossas ideias sobre o sentido da vida e o que é ser humano. Nesse cenário anômico, os dramaturgos do Teatro do Absurdo começaram a trazer para os palcos esse vazio existencial, recheado de humor negro e dramas psicológicos.

No fim de 2022, vivendo meu reality show do absurdo particular, de repente me vi revisitando duas obras seminais dos anos 1990: Seinfeld e Twin Peaks. Estranhamente, comecei a vislumbrar nessas obras, ambas estreadas na virada dos anos 80 pros 90, temas e estruturas muito similares às do Teatro do Absurdo.

Já sei, vocês estão achando exagero, mas, sério, deixa eu me explicar pra vocês verem só se eu não tenho uma certa razão. Vou começar falando dos plots das séries.

Primeiro, Twin Peaks. Mais uma das inúmeras obras primas de David Lynch, a série conta a história de, adivinham?, Twin Peaks, uma cidade abalada pelo misterioso assassinato da namoradinha da américa, garota da vizinhança, e animadora de torcida, Laura Palmer. Para investigar o crime, chega na cidade o exótico agente do FBI Dale Cooper que, usando métodos nada tradicionais, e buscando boa parte de suas pistas em sonhos e visões, descobre que a cidade e Laura não eram tão inocentes como pareciam ser.

É uma loucura só. Usando a estrutura clássica da Soap Opera, David Lynch and Mark Frost desconstroem todos os estereótipos clássicos americanos sem um aparente propósito ou mesmo sentido. O motoqueiro bonzinho, a amiga compreensiva, a mãe abnegada, a estranha sensual, a mulher misteriosa que fala com troncos, o casal de namorados do high school separado por circunstâncias além do seu controle… todos estão lá, no auge da sua bizarra americanice para serem transformados em pastiches de si mesmos.

Cidade estranha, com gente esquisita, eu não tô legal…

O filme contando os últimos dias de Laura, Fire Walk with Me, e a terceira temporada, lançada 26 anos depois do cancelamento da série ao fim da segunda, em nada ajudaram com a resolução do “mistério”. Como uma boa representante do Teatro do Absurdo, Twin Peaks mostra que o principal valor do mistério é ele ser aproveitado e não resolvido, ao contrário do que prometem alguns vídeos espertalhões de 4 horas no Youtube.

Já Seinfeld, do outro lado do espectro do gênero televisivo, foi uma comédia de situação, segundo os próprios criadores, sobre nada.

Claro que não era sobre nada. Nada é sobre nada. Inclusive, num ato genial de metalinguagem, eles discutem a criação de uma série dentro da própria série, tentando vendê-la, sem sucesso, como uma série sobre nada. Mas, imaginem só, além do piloto, não dá em nada. Mais existencialista que isso, impossível.

Criaturas de puro instinto, sem motivos nobres ou ambições

Porém, é preciso concordar que, frente ao cenário das sitcoms na época, era uma série sobre nada. Explico. A maioria das séries tinha uma presunção de arco, a ser cumprido ou não. Em Friends, Ross & Rachel ficaram anos num chove não molha resolvido no último episódio; a família Bundy, em Married with Children, por mais horrível que fosse a vida continuava se mantendo unida; e mesmo o pessoal de Will & Grace teve suas evoluções e mudanças pessoais. Já os personagens de Seinfeld nada queriam e a lugar algum iam. Apenas exercitavam suas perversidades morais, guiados pelos instintos mais vis, sem expectativas ou ambições, ou, mesmo, empatia e humanidade. Onde teríamos personagens mais desprovidos de sentido na vida do que esses? Só talvez em Curb your Enthusiasm, do outro criador de Seinfeld, Larry David.

É interessante notar que ambas as séries terminaram de formas bem características do Teatro Absurdo. Seinfeld repete na última cena a sua primeira cena, mostrando que nada de significativo ocorreu naquele ínterim ou que, simplesmente, a pedra de Sísifo rolou de volta para o lugar de onde nunca deveria ter saído. Já a segunda temporada de Twin Peaks foi simplesmente sendo abandonada pelo público e pelos seus criadores num crescente estado de surrealismo, expulsando até os mais fortes pela sua inescapável falta de sentido.

Twin Peaks sucumbindo ao buraco negro da sua própria falta de sentido

Outra curiosidade interessante é que muitos personagens de Twin Peaks também bateram ponto em Seinfeld, aumentando a sinergia entre as duas séries. Essa sinergia é aproveitada por um perfil bem interessante no Instagram que faz um mix dessas obras primas.

A pergunta que fica é: por que duas das séries mais bem sucedidas dos anos 1990 tinham esse perfil tão 1950/60? Não havia, claro, uma Segunda Guerra para estimular esse questionamento do propósito da humanidade, mas, guardadas as devidas proporções, também estávamos passando por um momento de quebra do Status Quo.

A Guerra Fria chegou ao fim na mesma época da estreia delas, com a ruína da União Soviética e do Muro de Berlim, e botou em cheque o American Way of Life. Sem os comunistas para contrapô-los, ser americano perdeu o sentido de ser, e até Francis Fukuyama decretou o fim da história. Que melhor momento para contar histórias sobre o Nada do que depois do fim da história? Nesse buraco negro de vazio existencial, Seinfeld, como comédia, e Twin Peaks, como drama, trataram de explicitar a angústia do Nada nas telas das nossas tevês.

Então, concordam que essas duas séries se encaixam bem no modelo do Teatro do Absurdo? Ou será que eu, como o Ubu Rei, personagem ícone do início do Teatro do Absurdo, não tô legal e imaginando mil coisas?

Onde assistir:

Seinfeld – Netflix
Twin Peaks – Paramount

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