Sabe aqueles filmes que causam uma espécie de ressaca cinematográfica? Aqueles que causam tal impacto que não conseguimos partir pra outro logo a seguir, porque precisamos de um tempo para nos recuperarmos do choque?  A pele que habito é um ótimo exemplo dessa categoria. Lembro que quando assisti pela primeira vez, quando os créditos finais começaram a subir, ainda estava paralisada na frente da tela, tentando digerir o que foi visto.  São tantas as questões levantadas, que precisei assistir novamente, dessa vez já ciente do que aconteceria e sem o choque do impacto causado pelas revelações que temos ao longo da história. Vamos à sinopse: Roberto, um cirurgião plástico viúvo é movido simultaneamente pela ânsia profissional de criar uma pele perfeita – à prova de queimaduras e outros ferimentos – e pelo desejo de vingança contra o homem que supostamente estuprou sua filha.

Esse filme difere da cinematografia anterior de Pedro Almodovar por ser, de acordo com o próprio, sua primeira incursão no gênero terror, mas, “um terror sem sangue e sem sustos”.  Essa declaração poderia ser contestada, se pensassemos no tipo de filme de horror ao qual estamos acostumados, aquele repleto de gritaria, perseguição e escuridão. Aqui temos quase o oposto: as cores vibrantes e os personagens espalhafatosos que são a marca do diretor estão presentes. Há mais claridade que escuridão. Não há monstros vindos do espaço ou maníacos mascarados perseguindo adolescentes. Entretanto, a experiência de aniquilamento é muito mais profunda, porque está relacionada ao que temos de mais primitivo: o corpo. E por isso mesmo, é possível enquadra-lo também na categoria drama.

Em posts anteriores, falei sobre o fato de que em filmes como Jogos Vorazes e Laranja Mecânica, os corpos dos protagonistas deixam de lhes pertencer quando escolhidos, respectivamente para participar dos Jogos Vorazes e de uma experiência científica (veja abaixo os links para as respectivas matérias).

No filme de Almódovar, essa usurpação do corpo ocorre de forma ainda mais radical. Vejamos:  a esposa de Roberto se matou por não suportar se ver no espelho após um acidente que a deformou. Sua filha após presenciar o suicídio materno, enlouqueceu e foi internada. Ao sair da clínica e conhecer Vicente,  dá ao rapaz sinais que o levam a acreditar que quer ter com ele uma relação consensual. Mas quando ele lhe toca, ela surta e, embora o sexo não se concretize, Roberto passa a acreditar que a filha foi estuprada. Para vingar-se, ele sequestra Vicente e o tortura das mais diversas formas. Paralelamente, vemos Roberto usando Vera como cobaia para suas experiências, por vezes bastante cruéis, que atingem o ápice quando finalmente descobrimos qual a conexão dela com Vicente. E há ainda o encantamento de Roberto por Vera, o fruto de seu trabalho. Queimaduras, estupro, tortura, perda da lucidez e da identidade sexual, e até mesmo a paixão: todas essas situações vividas pelos personagens se  relacionam diretamente a perda de controle sobre o próprio corpo e/ou ao desconforto em passar a habitar uma pele com a qual não se identificam mais.

O filme serve para discutir tópicos que vão de bioética à sexualidade humana, mas, a questão central que permeia toda a trama é mesmo a relação entre corpo e identidade. É interessante notar como na história de Almodovar, os personagens lidam de forma diversa com o sofrimento causado pelas marcas físicas e psíquicas. Um busca refúgio na morte, outro na loucura e há quem consiga encontrar saídas alternativas para manter a sanidade, apesar de tudo (como o ioga que Vera pratica).  Podemos pensar que o mesmo acontece na vida, as pessoas não reagem da mesma forma às adversidades e à violência ao qual são submetidas. Interessante também o final do filme, que acena com a possibilidade de recomeço para um dos personagens, mas, com a necessidade de reconstrução da sua identidade. Enfim, o filme abre um interessante leque de discussões e há muito mais que poderia ser dito, mas, não caberia apenas num post. Vale a pena assistir e tirar as próprias conclusões.

Para terminar, uma curiosidade: O filme é baseado no livro Tarântula, do francês Thiery Jounquet, que tem a seguinte sinopse: “Um cirurgião plástico renomado e a bela mulher prisioneira de suas vontades, a adolescente que se automutila em um hospício, o jovem acorrentado no porão obscuro depois de uma perseguição implacável, o assaltante fugitivo, condenado pelo próprio rosto. Um erro fatal do passado reunirá Richard Lafargue, Ève, Viviane, Vincent Moreau e Alex Barny na mesma teia. Neste thriller vertiginoso, não há limites para o horror e o desejo, construindo um romance que captura e envolve como uma aranha à sua presa”. Na trama de Almodovar, Roberto corresponde a Richard, Vincent a Vicente e Éve a Vera.

Link para Laranja mecânica: http://cinemaparasempre.com.br/index.php/2018/06/29/laranja-mecanica/

Link para Jogos Vorazes: http://cinemaparasempre.com.br/index.php/2018/03/17/jogos-vorazes/

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