Três lançamentos nada atuais nos serviços de Streaming que vale a pena conferir.

Separações (2003)

Tive um professor de História da Arte que vivia implicando com o regionalismo brejeiro do cinema nacional. A tentativa de encontrar a brasilidade no cinema, segundo ele, era um esforço inútil que só produzia pastiches que nada se aproximavam da realidade do nosso povo. Até hoje concordo e discordo com a sua opinião. A tal universalidade é, sim, impossível e estereotipante, mas como dizia Tolstoy: “se queres ser universal, canta a tua aldeia”. E se tem um cara que representa bem essa dicotomia é o Domingos de Oliveira.

Todo mundo o conhece por Todas as Mulheres do Mundo, que é um filme revolucionário visualmente ao mesmo tempo que se afastava dos temas revolucionários da época em que foi lançado.  Mas eu, pessoalmente,  gosto muito mais da sua fase do B.O.A.A. (Baixo Orçamento e Alto Astral), e Separações é o filme mais representativo dessa época.

Separações conta a história do luto vivido pelo casal de artistas, Glorinha e Cabral, enquanto decidem se separam ou não. Uma história universal e profunda, mas também uma comédia romântica despretensiosa sobre a classe artística que transita na zona sul do Rio de Janeiro, cheia de piadas internas sobre a Globo, a cena do teatro carioca, garçons, bêbados e casos amorosos. Enfim, histórias locais. Onde estaria a universalidade pedida pela “arte” naqueles porres e papos em bares dos baixos Gávea e Leblon? Aparentemente em lugar nenhum.

Nas primeiras vezes que o assisti, achei que havia no filme uma carga absurda de humor não proposital. Me parecia que certas cenas e situações, criadas para dar carga dramática ao filme, tinham sido tão exageradas que se tornaram cômicas. Contudo, estranhamente, a cada vez que o assistia, ele tomava uma conotação diferente. As cenas que me pareciam exageradas e histriônicas passaram a parecer críveis e a humanidade dos personagens cada vez mais forte. Algumas situações eram ridículas? Sim, mas não o somos todos?

Domingos de Oliveira me mostrou que o meu professor estava errado. Toda arte é local. E só fala ao e sobre seu autor a quem quiser escutar. Cabe ao público ter uma posição ativa de ouvir e refletir. É nessa reflexão, nesse contato, que surge a arte. Na conjunção dessas duas sensibilidades é que ocorre a mágica catalização da experiência artística. Basta estarmos abertos a conhecer realidades diferentes da nossa e a nos reconhecermos uns nos outros.

Indicação: Para quem precisa resolver seu luto nos Baixos Gávea e Leblon.

Onde assistir: NetMovies.

Bar Esperança (1983)

Uns dois anos depois da morte de Hugo Carvana, esbarrei com a Maria Gladys, atriz em vários de seus filmes, num bar em Copacabana. Conversamos sobre o mais carioca de todos os cineastas e de como lhe faltavam homenagens. Ela reclamava da falta de mostras dos seus filmes, enquanto eu defendia que tinham que fazer uma estátua da sua cabeça em plena praia de Copacabana, exatamente como no curta de Rosane Svartman, que ele estrelou.

No fim do papo, Maria Gladys me questionou onde estava aquela cidade amistosa, bem humorada e festiva dos filmes do Carvana. Bom, triste dizer, mas essa cidade inventada e transformada em realidade por Hugo Carvana, acabou enterrada pelo pragmatismo José Padilha. E, dentre todos os seus filmes que criaram a mística do carioca malandro e boa praça, como Vai Trabalhar Vagabundo, Bar Esperança é o lugar onde você vai encontrar esse Rio de Janeiro perdido em todo o seu esplendor.

Nesse filme, passado no fim da ditadura (a de 64, não a atual), somos guiados pelo mais belo zoológico humano através do, surpresa!, processo de quase separação de um casal de artistas: Zeca, um roteirista em eterna crise existencial; e Ana, uma atriz que atualmente interpreta, e sofre por ser, a mulher má da novela. A história do casal é quase toda encenada no tal Bar Esperança, orbitado pela classe artística e intelectual carioca do final dos 1970 e início dos 1980.

É o melhor retrato do que o Rio passou durante os anos de chumbo. Temos registrado nele causos clássicos vividos nos finados bares Antônio’s, Barbas e Zeppelin, além de personagens icònicos, como o Passarinho, inspirado no folclórico irmão da Scarlet Moon, Roniquito.

É triste que, pós retomada do cinema nacional, enterramos esse Rio de Janeiro maravilhoso para privilegiar a versão cínica, escatológica, violenta, limitada, porém realista, do José Padilha. Mas, cá entre nós, se a gente assistir bastante Hugo Carvana, tenha certeza, o Rio vai melhorar. Afinal, nossas crenças guiam nossas ações e o que mais precisamos é fazer o/a Esperança renascer.

Indicação: Pra quem tem saudades do que @s cariocas tem de melhor.

Onde assistir: Looke e NetMovies.

Edifício Master (2002)

É impossível ser mais local do que isso. Eduardo Coutinho se mudou com uma equipe pequena para um prédio cabeça de porco de Copacabana e por três semanas conduziu entrevistas com seus moradores. Dessas conversas saiu um dos retratos mais humanos e envolventes do Rio de Janeiro e do planeta Terra.

O filme pegou um período interessante no Brasil que foi o processo de ascensão econômica das classe C. Isso permitiu que no Edifício Master, e no filme, você conseguisse encontrar toda uma gama de pessoas dos mais variados backgrounds, profissões e classes sociais. Esse mosaico, delicadamente construído por Coutinho, nunca toca diretamente nesse tema, mas na investigação das histórias pessoais e emocionais dos moradores temos um retrato de um bairro, de uma cidade e de um país.

Tem de tudo. A jovem prostituta, o síndico severo e amoroso, a senhora risonha, o aposentado “rico” e cheio de histórias, a banda de rock, a estudante, o casal de idosos apaixonados, a mãe solteira, o camelô, o biscateiro… o que você quiser vai encontrar.

A fluidez dessa obra feita com elegante simplicidade dá a impressão que foi um trabalho fácil e inspirado que, pela boa fortuna, surgiu quase pronto. Mentira. Foi um processo longo, pensado e difícil muito bem retratado no documentário Apartamento 608, dirigido por Beth Formaggini, com os bastidores da criação do Edifício Master. Um filme dentro de outro filme que complementa perfeitamente a humanidade encontrada nos quitinetes de Copacabana.

Indicação: Pra nos lembrar que no apartamento vizinho há todo um universo de humanidade, histórias e emoções.

Onde assistir: Looke (Aluguel e Compra).

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