AS CINEASTAS DO FANTÁSTICO

Por Filippo Pitanga

Hoje vamos falar da saudosa cineasta Kira Muratova, uma das diretoras de estética mais insanamente ligada ao subconsciente e à livre formulação de linguagem, quase como se o cinema de gênero pudesse abraçar as patologias da mente e do corpo como linguagem. Como a esquizofrenia ganharia forma na telona? Ou a ansiedade, o estresse, transtornos obsessivos e síndromes astênicas? Nossas patologias e doenças podem se tornar expressão artística ante um olhar do mundo através da telona da sétima arte?!

Kira Muratova (1934 – 2018)

No dia 06 de junho de 2018, eu recebi uma notícia muito triste que me abalou de forma inesperada: não só o anúncio em si do falecimento da grande cineasta Kira Muratova aconteceu extremamente em surdina, como boa parte da comunidade da crítica de cinema se restou silenciosa perante este fato, como se quase ninguém a conhecesse. Fiquei desolado ao saber no meio da correria do Festival Olhar de Cinema em Curitiba que a cineasta havia falecido quase como uma nota de rodapé nas notícias externas ao Festival…

“Uma das cineastas de língua russa mais respeitadas, falecida aos 83 anos em Odessa”, como havia anunciado a agência ucraniana de cinema, e continuava relatando: “Em 1989, Kira Muratova recebeu o prêmio especial do Festival de Cinema de Berlim com o filme “A síndrome astênica”. Cinco anos mais tarde, recebeu um prêmio especial pelo conjunto de sua obra no Festival de Locarno. Além de que no BAFICI 2018 aconteceu uma retrospectiva dela. Grande diretora”.

Alguns poucos colegas do meio haviam se debruçado um pouco mais sobre o enorme merecimento da diretora, como nesse texto a seguir do crítico e curador argentino Roger Koza sobre ela: http://www.conlosojosabiertos.com/estado-animo-cine-kira-muratova/

Eis uma cineasta de extrema importância e relevância histórica, além de um enorme poder de linguagem de vanguarda ímpar, que muitos cinéfilos e estudantes ou mesmo profissionais de cinema ainda desconhecem. Para facilitar o conhecimento sobre ela, irei evocar um pouco de contexto, curiosamente, e não por coincidência, nas palavras de um dos curadores do mesmo supracitado Festival Olhar de Cinema, Aaron Cutler, que havia sido o único a realizar uma Mostra sobre a diretora no Brasil até a pesquisadora Marina “Nina” Cavalcanti Tedesco trazer de volta os filmes da cineasta numa Mostra sobre Diretoras Russas. O curador Aaron Cutler, à época da primeira Mostra retromencionada sobre ela, já chamava atenção para o estranhamento que os filmes da diretora provocam no espectador. Falando de sua obra-prima, “Síndrome Astênica”, ele comenta: “O filme, tal como muitas das melhores obras de Muratova, contém uma tensão que faz com que as pessoas, inicialmente mais rígidas, tornem-se mais abertas ao mundo que as rodeia e, ao encontrarem satisfação nesse processo, consigam seguir cada vez mais adiante.”

Outro que já havia se debruçado sobre a carreira dela em vida, na época da Mostra retromencionada, foi o grande amigo crítico Carlos Alberto Mattos, que buscou uma citação direta da diretora para descrevê-la: “Harmonia não significa equilíbrio. É preciso destruir alguma coisa simetricamente, quebrar regras. Só assim as coisas te pegam” – que, na época da Mostra, era considerada a maior cineasta viva da antiga URSS.

E Carlos Alberto continua: “Seus filmes são considerados difíceis, insólitos, imprevisíveis. Mas, em alguns casos, são eivados de um humor negro e uma tonalidade surrealista que os tornam, ao mesmo tempo, irresistíveis. Nascida em 1934, ela foi criada na Romênia e depois estabeleceu-se em Odessa (Ucrânia), onde construiu sua obra um tanto à margem dos circuitos dominantes da produção soviética. As influências mais detectáveis em sua carreira talvez sejam as de Chaplin (pantomima, humor físico), Fellini (onirismo, caricatura), a Nouvelle Vague (histórias de amor, descontinuidades temporais) e Paradjanov (“ornamentalismo” visual, narrativa rarefeita). Suas personagens vivem num atrito permanente com o ambiente circundante e com as outras pessoas. Esse comportamento parece contaminar a própria estrutura dos filmes, marcada por rupturas e separações. Muratova pretende reproduzir essa casualidade da vida mediante os saltos no tempo e no espaço, assim como nas falas cujo sentido demoramos a compreender ou mesmo saber de quem procedem. O filme parece sofrer dos mesmo males das personagens, da mesma deriva existencial.”

Adentrando um pouco mais no filme talvez mais lembrado da cineasta, Carlos Alberto Mattos complementa:

“A ideia de ruptura, tanto no comportamento dos personagens quanto na arquitetura do filme, ganha ênfase a partir de Síndrome Astênica (1989), o filme de Muratova mais conhecido internacionalmente, até por conta do Urso de Prata que ganhou em Berlim. O longa é explicitamente dividido em duas partes, unidas por um golpe de metalinguagem. Na primeira parte, em preto e branco, uma médica abandona o funeral do marido e sai pelas ruas xingando, provocando e agredindo amigos, vizinhos e desconhecidos. Uma pane emocional certamente advinda da indiferença do mundo a sua dor. (…) Subitamente, a ação é cortada para uma sala de cinema, agora em cores, onde a atriz aparece no palco para debater o filme em que estava até então. Tudo se altera. A plateia sai em debandada, não sem reclamações quanto ao tempo perdido. Na sala resta apenas um homem adormecido. Ele é um professor de inglês frustrado que simplesmente pega no sono em momentos cruciais de sua vida. Em torno dele, o filme vai arrebanhar uma fauna de personagens em situações caóticas que dão corpo às agruras da vida soviética já em tempos de perestroika. A irritação da médica e a narcolepsia do professor são formas da neurastenia a que alude o título do filme. São neurastênicas também as práticas de fala dos personagens: eles repetem as mesmas frases diversas vezes, falam coisas distintas ao mesmo tempo ou em uníssono, desfiam solilóquios. Os atores representam sempre um ou dois tons acima ou abaixo do natural. A continuidade é quebrada por saltos, intercalações ou cortes abruptos. Proliferam as reações estapafúrdias, os climas desconexos e os rumos inesperados. Um cinema legitimamente neurastênico, enfim.” – arremata o crítico num tom de agradecimento pela vanguarda da linguagem de Muratova.

Por fim, reitero as palavras do amigo Carlos Alberto e faço eco a elas e a críticos que já vinham se debruçando sobre a carreira desta notável cineasta: Dou razão ao crítico Jonathan Rosenbaum quando ele disse que Síndrome (e eu estendo a afirmação para todo o cinema de Muratova) “pode lhe deixar maluco – e sem dúvida foi feito para isso – mas você certamente não irá esquecê-lo.”

O filme “Síndrome Astênica” se encontra na plataforma de streaming Amazon Prime Video:

https://www.amazon.co.uk/Sindrome-Astenica-Olga-Antonova/dp/B06ZXXDR8Q

Confira o link com a resenha sobre a filmografia da autora pelo crítico Carlos Alberto Mattos:

http://criticos.com.br/?p=7510&cat=2

E o texto completo de Aaron Cutler sobre a cineasta:

http://www.indiefestival.com.br/2015/program.php?id=5&l=pt

Link para matéria completa no Almanaque Virtual:

http://almanaquevirtual.com.br/morre-cineasta-ucraniana-kira-muratova/

Filippo Pitanga é advogado, jornalista, curador e crítico de cinema, mestrando pela UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor na Academia Internacional de Cinema RJ, Membro da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro – ACCRJ.

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