AS CINEASTAS DO FANTÁSTICO. Por Filippo Pitanga

Hoje vamos assumir 100% nossa faceta aterrorizante do fantástico e falar de uma cineasta que mergulhou de cabeça e alma no gênero do terror, e é muito maior do que apenas a obra pela qual costuma ser mais lembrada: Mary Lambert, diretora de “Cemitério Maldito” (1989).

Esta coluna vem semanalmente elencando inúmeras mulheres que dirigiram filmes dentro do amplo espectro do gênero fantástico, tenham elas sido reconhecidas por sua contribuição…ou não. Então, fazemos isso na esperança de reparar a invisibilidade histórica que acomete alguns trabalho no cinema, especialmente quando se trata das mulheres cineastas.

Mas se existe um gênero que é ainda mais injustiçado do que os demais, infelizmente, ainda é o gênero do terror. Se outros gêneros às vezes deixam de receber o devido reconhecimento merecido, o terror historicamente costuma ser um dos gêneros mais subestimados, quiçá o mais injustiçado de todos – apesar da recente febre que passou a vangloriar alguns exemplares do gênero sob nomes recentes como Jordan Peele, Robert Eggers e algumas mulheres que também serão elencadas futuramente nesta coluna.

Mary Lambert (1951 – )

Mary Lambert pode ser muito lembrada por um filme específico, porém possui uma extensa carreira consolidada. Iniciando a década de 80 com a estética dos videoclipes, Mary filmou os vídeos da geração MTV de quase todos os maiores artistas daquela década, especialmente grandes mulheres: De Annie Lennox e seu Eurythmics, Debbie Harry (Blondie), Pretenders, B-52, The Go-Go’s, Kim Carnes, Alison Krauss, Janet Jackson e Whitney Houston… Além, claro, da rainha Madonna, com vários dos videoclipes mais marcantes e controversos do início da musicografia da diva platinada como “Like a Virgin” e “Like a Prayer” – onde já prenunciava flertar com a relação entre o sagrado e o profano, algo muito caro ao cinema de gênero (para quem não se lembra, até cruzes pegando fogo e Madonna fazendo amor com Jesus Cristo negro havia no videoclipe, com um olhar vanguardista decolonialista). Sem deixar de mencionar vários outros artistas como Lionel Richie, Mick Jagger, Sting, Chris Isaak, Rod Stewart etc…

Por outro lado, seus empreendimentos no cinema demoraram um pouco mais para acontecer, porém iniciou com uma joia independente de elenco estelar: “Marcas de uma Paixão” de 1987 (“Siesta”), com Ellen Barkin, Jodie Foster, Grace Jones, Isabella Rossellini, Gabriel Byrne, Martin Sheen etc. Já flertando com o cinema de gênero, sua protagonista acorda sem memória, coberta em sangue e toda machucada, acreditando ter matado alguém, o que a faz perambular pelas ruas da Espanha sem dinheiro atrás de reviver os flashbacks que façam com que se lembre do passado. Vale ressaltar trilha sonora exclusiva com Miles Davis. O filme recebeu críticas mistas, sendo tanto indicado a maior premiação de cinema independente norte-americana, o Spirit Awards, como também para o Framboesa de Ouro. – o quanto a linguagem de gênero já estaria afunilando as possibilidades de reconhecimento de sua carreira?

Daí para o próximo passo foi um pulo para o abismo do terror… e daí para frente um caminho sem volta, pois não só ela se apaixonaria pelo gênero, como se tornaria indissociável a ele.

Enfim, em 1989, adveio o convite para poder filmar a adaptação do livro de Stephen King, “Cemitério Maldito” (“Pet Sematary”), algo que marcaria sua carreira de vez no cinema de nicho. Esteticamente, à luz do presente, algumas pessoas poderiam perder a sensação de vanguarda que sua obra teve na hipótese de assistirem ao filme apenas sob a ótica do avanço dos efeitos especiais e de maquiagem… Mas não é este o foco do filme e nem sequer era naquela época. Para todos que conhecem a história de cor e salteado, Lambert inaugura algo bem interessante para aquele período, que seria o terror extremo, o terror explícito, como mortos, fantasmas e zumbis não serem o real perigo… e sim o ser humano vivinho da silva!

Lambert inova ao usar todos os arquétipos mais gore e dantescos para alertar os protagonistas do perigo porvir, fitando uma possível salvação. Desde o jovem estudante que o médico Dr. Louis Creed (Dale Midkiff) não consegue salvar e que regressa em sua forma fantasma-zumbi para salvar as personagens… E até o famoso gato Church, adorado pelos fãs (eu mesmo tenho o funko dele), que é o primeiro membro da família a morrer e ser ressuscitado, voltando de forma tão alterada e assustadora que praticamente alertava com um letreiro gigante na testa: “NÃO TRAGA MAIS NINGUÉM DE VOLTA”! “VAI DAR RUIM”!

E sim, algumas pessoas vão dizer: mas isso está no texto do brilhante Stephen King! Sim, no texto está! Mas o extracampo do texto quem construiu foi o cinema: desde a trilha sonora de terror que cercava os maiores alertas de salvação (e não os de morte), bem como a maquiagem mais grotesca e os closes mais repugnantes apenas na hora de gerar um trauma na visão do espectador que ele não seguisse o mesmo caminho… Tanto que as cenas de morte em si no filme, a grande maior parte delas, são totalmente sublimadas. A única que não é eivada na montagem, e que se torna explícita, é a do vizinho, o senhor Jud Crandall (interpretado com esmero num dos melhores papéis da carreira de Fred Gwynne, o eterno Herman Munster, da “Família Monstro”).

Os sustos, o horror, o gore são todos alertas! O resultado é singelo… assim como a estupidez humana. Assim como os sons mais assustadores do que a trilha, ou do que a irônica canção original homônima dos Ramones (“I don’t wanna live my life again”), são os que reproduzem a ameaçadora realidade lá fora, o avanço da modernidade simbolizado nos pesados caminhões de transporte que passavam em velocidade máxima pelo asfalto na beira do lar da família protagonista – alertando que o capitalismo é uma organização social incompatível com o bem estar, e que nem as velhas e poderosas magias do passado são capazes de redimir a responsabilidade sobre o peso do presente… Não à toa, mesmo que esta versão cinematográfica da obra de Stephen King não mencione alguns estudos sobrenaturais ou demônios descritos por King no livro, como o Wendigo, ainda assim a força ancestral presente no cemitério indígena do filme não poderia dar conta da opressão colonizadora que o mundo cético e falso se tornou hoje em dia.

Enquanto seu filme não necessariamente recebia aclamação de crítica, mas recebia do público, Mary Lambert passava a filmar também os videoclipes de grandes bandas de heavy metal, um estilo musical bastante ligado à estética de filmes de gênero, o que aquele período musical usava e abusava desta plasticidade com toques cinematográficos, como Queensrÿche e Mötley Crüe.

Depois foi uma carreira inteira entregue ao terror assumido e escancarado, dirigindo episódios da saudosa série “Contos da Cripta”, bem como sequências de franquias como “Cemitério Maldito 2” (1992), “Lenda Urbana 3: A Vingança de Mary” (2005), “Mega Python Vs Gatoroid” (2011) etc… Bem como dirigiu episódios de famosos seriados de TV da atualidade, como “Arrow” e “Black List”.

Apesar de muitos de seus longas-metragens nem sequer terem estreado nos cinemas, apenas no mercado caseiro, ela é sempre convidada para documentários que elencam grandes mulheres diretoras de Hollywood para falar de suas experiências, o que demonstra bem o abismo de hipocrisia da própria indústria, como em “The 100 Greatest Pop Videos” (2005) e “Pretty Bloody: The Women of Horror” (2009).

Confiram o grande filme da diretora, “Cemitério Maldito”:

https://www.youtube.com/watch?v=X1XSv0J_Z3U

“Cemitério Maldito 2”:

https://www.youtube.com/watch?v=qZscintr0_g

E quem quiser saber mais sobre a refilmagem homônima de 2019, leiam o texto do amigo Euller Felix para o Cinetop:

https://cinetop.com.br/reviews/cemiterio-maldito-filme-2019

E o texto do mesmo sobre o livro de King que deu origem a tudo:

https://lugarnenhum.net/…/cemiterio-maldito-livro-rese…/amp/

Filippo Pitanga é advogado, jornalista, curador e crítico de cinema, mestrando pela UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor na Academia Internacional de Cinema RJ, Membro da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro – ACCRJ.

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