The White Lotus: Exoticamente hilariante ou estranhamente desconfortável? Um espelho intencionalmente incômodo para o pacto entre a branquitude e o capital.

É curioso que, justo nesta temporada de estréias em streaming, ainda no meio da pandemia, os resorts onde gente rica vai passar suas férias de verão tenham sido o lugar mais quente do audiovisual! Ainda mais para debater sobre questões de classe e opressão, utilizando da relação entre hóspedes e funcionários para ampliar o abismo gerado pelo capital. Se outrora víamos esse tipo de construção mais freqüente no universo do trabalho, entre colegas da firma e seus respectivos patrões (ou patroas), agora a disparidade de direitos se intensifica com a servitude e a condescendência perante as vontades e caprichos de quem impunemente acha que dinheiro compra tudo.

Desde o longa-metragem “Tempo” de M. Night Shyamalan (“Old” no original), que é uma adaptação do Cult em HQ “Castelo de Areia” de Frederik Peeters e Pierre-Oscar Lévy, à nova série produzida e estrelada pela estrela Nicole Kidman na Amazon Prime Video, “Nove Desconhecidos” (“Nine Perfect Strangers” no original), do livro homônimo de Liane Moriarty. Ambas produções levam seus protagonistas abastados para hotéis paradisíacos em crise existencial, numa busca desesperada por algum sentido da vida e por se reconectar com seus pares… Eles não enxergam como se distanciaram das coisas mais simples que dão valor ao dia a dia, bem como deixaram de enxergar o próximo, que passa a ser relativizado perante o outro (porta de entrada escancarada para preconceitos, intolerâncias, discriminação e etc).

Mas não estamos aqui para falar de nenhuma destas duas produções, que almejam alcançar a catarse em SPA de luxo por vias completamente diferentes, e com resultados bastante destoantes. Na verdade, a melhor produção desta seara a tratar do assunto através deste dispositivo insuspeito se chama “The White Lotus” da HBO (e já disponível completa na HBO Max), nova série que se promete antológica, com um conjunto de hóspedes diferente a cada temporada e cujas histórias irão se encerrar a cada ciclo, para renovar a crônica a partir de outras idiossincrasias.

Curiosamente ou não, por ironia da origem etimológica da palavra “branca” em inglês, a série “The White Lotus” (lótus branca, na tradução ao pé da letra, uma flor oriental que costuma significar paz transcendental) foi criada pelo roteirista Mike White, um freqüente colaborador do comediante Jack Black, como no clássico “Escola do Rock” (“School of Rock” de 2003). Além disso, White também já havia enveredado para a televisão como idealizador de outro seriado subestimado e quase esquecido sobre paz transcendental, com a diva Laura Dern, que se chamava “Enlightened” (2011-2013), já possuindo um humor peculiar e ácido que talvez levassem seu criador a ser mal interpretado por alguns tipos de público…

A escrita de Mike, principalmente para diálogos com duplo sentido ou que intencionalmente geram estranhamento, não costuma ser o tipo fácil para cair no gosto das massas – exceto quando possui o parceiro Black para aliviar o veneno respingando de sua caneta. Contudo, torna-se ainda mais paradoxal o fato de o autor escolher um elenco de hóspedes predominantemente brancos e podres de ricos para se hospedar numa pequena ilha do Havaí, onde seus anfitriões representarão uma diversidade que costuma ser vista pelos hóspedes apenas como “exótica” ou “objetificada” – só ampliando a intenção de desconforto e de crítica social da obra.

Então, como pode ser uma comédia, talvez esteja se perguntando o leitor? Com um tema e carga tão fortes, caso fosse filmado de modo realista e sóbrio talvez fizesse o tiro sair pela culatra. Até porque Mike roteirizou várias produções de sucesso, mas poucas vezes dirigiu aquilo que escreveu, e, neste caso em questão, ele acumulou todas estas funções e mais alguma, como produtor, assumindo todo o risco, caso desse errado.

Porém, o tom da série carrega bastante nas tintas coloridas havaianas e parte dos excessos para gerar uma paródia da riqueza. Essas personagens podem até ser o foco, e possuir mais tempo de cena do que os funcionários, mas não saem impunes de seu próprio ridículo, de modo a soar tão patéticas quanto hilárias. E não apenas o colorido e a locação almejam criar uma grandiloqüência pantomímica, mas o outro melhor atributo da série passa a realçar as atuações a partir exatamente disso: a trilha sonora selvagem, emulando uma fauna e flora com ruídos animalescos, que acompanham cada personagem como num safári, entre feras e…frutas!

Imagine uma suíte com o nome de suíte pineapple (sim, no Brasil, “abacaxi”, que ainda ganha a conotação extra de problema a ser descascado), e possuir casais disputando por um quarto que é tão luxuoso quanto outros do hotel, fazendo chegar a uma disputa de vida ou morte. Esse tipo de bestialidade aflorada do ser humano é trazida à tona bem aos poucos, sem erupções abruptas, de modo que parece natural quando chegamos ao clímax dos episódios e mais algum incidente acontece para parodiar as personagens. Sejam cenas non sense ao naïf, que vão desde despejar as cinzas da mãe falecida no meio de um jantar romântico ao pôr do sol; ou interromper um assalto na própria suíte de luxo que vai unir a família cindida; e até mesmo cenas de orgia regada a remédios controlados e psicotrópicos roubados de uma hóspede… O estranhamento fica menos focado nos atos em si e muito mais nas reações pessoais a estes beats de roteiro.

A própria escalação do elenco abraça essa idéia de modo bem azeitado, como se não tivesse problemas em assumir que essas pessoas ricas e estranhas seriam analogias de animais exóticos, como o pavão inseguro interpretado por Jake Lacy, recém-casado com a temerosa personagem de Alexandra Daddario, e cujo casal compensa suas vulnerabilidades ao projetar suas piores facetas nos outros hóspedes (e funcionários). Ou mesmo a onça pintada na pele da ótima Connie Britton, que serve de empresária bem-sucedida a carregar a família nas costas, de modo a eclipsar o auto-emasculado marido e leão sem juba Steve Zahn, numa sátira de família moderna, onde os filhos são hienas fazendo chacota de seus pais (a excelente Sydney Sweeney e o curioso Fred Hechinger).

Porém, nenhum deles supera o destaque que é a escorregadia persona irresistível da atriz Jennifer Coolidge, aparentemente inofensiva, mas cujo abraço de urso pode ser letal, e ainda assim você é esmagado sorrindo e com simpatia por ela e todo o conforto caloroso do seu afago mortal. Ela demonstra perfeitamente a faca de dois gumes da comicidade, sempre de mãos dadas com a opressão camuflada pelo riso agridoce, especialmente em relação às personagens subservientes, como a responsável pelo SPA do hotel na pele de Natasha Rothwell (“Insecure”), pois as funcionárias apenas se tornam parte do display satírico caso sejam arrastadas pelas manipulações de seus hóspedes.

Já a cereja do bolo deve ser dada a um dos outros funcionários, na verdade, o chefe da equipe, o concierge do hotel, encarnado pelo excelente Murray Bartlett, que rouba absolutamente todas as cenas, e demonstra todo o enlouquecimento e devaneio de quem se entrega sem reservas às maluquices de seus hóspedes como se fossem suas, sem auto-preservação e manutenção da individualidade e respeito próprio. É nele que residirá a maior catarse da história, que decerto coloca em xeque o poderio do capital como um dos maiores males da humanidade, passando como trator sobre os indivíduos e de forma impune para aqueles que detêm seu fugaz poder momentâneo.

As personagens não se furtam a serem detestáveis e a exercer o pior de si, como se a viagem de férias fosse mais enfadonha do que suas vidas lá fora, e precisassem criar situações constragedoras para saciar o fastio do ócio, não importa às custas de quem. E essa forma de compartimentar o roteiro em esquetes de situações separadas para cada núcleo narrativo poderia até funcionar contra o aproveitamento maior, porém faz com que de fato se funda como uma cola todas as circunstâncias alheias de modo a potencializar o que cada um está passando com o tema específico de cada capítulo — ou seja, importa menos a jornada do herói individual e muito mais o assunto diferenciado que sequestra a todos no episódio como furacões distintos de cada vez.

Não à toa, a grande maior parte dos hóspedes é branca, numa ilha havaiana cujos descendentes de seus povos originários não possuem direito algum, e cujo próprio nome do hotel, White Lotus, é uma ironia não só com o significado da flor branca da paz transcendental, como com uma seita taoísta que prometia trazer reequilíbrio à Terra através da vinda de uma Grande Mãe na virada do milênio passado, e que, aparentemente, nunca chegou. Vários dos livros que estão sendo lidos pelas personagens corroboram isso, pois, uma vez que estejam como simples objetos de cena sutis para o espectador observar a intertextualidade dramatúrgica, ou sejam evocados de forma explícita nos diálogos, como de Frantz Fanon a Judith Butler, fica evidenciada a intenção decolonialista de um contra-texto dentro do texto.

A autoralidade do extracampo de Mike White declara ter plena noção da insuportabilidade de suas personagens, ao mesmo tempo em que admite que elas são humanas, e, por suas falhas, acabam sendo passíveis de identificação, mesmo que não queiram. Ainda que o espectador não tenha o privilégio que alguns membros do elenco possui, todos podem se relacionar com as ruínas do ser humano que às vezes apodrecem dentro de nós. E os livros lidos pelas personagens, ou as citações mais intelectuais servem não como lição de moral, mas auto-consciência de que há outros mundos lá fora, independente que a vontade de mudar seja apenas uma demonstração para ficar na superfície.

Até mesmo o contraste entre as personagens ricas demonstra isso. A esposa emancipada e empoderada versus a esposa troféu; o marido emasculado e o marido prepotente que trata tudo e todos como propriedade; e, principalmente, a melhor relação entre a filha herdeira mimada branca e a melhor amiga negra, levada a tiracolo pela família abastada, e que servem de espinha dorsal para unir os capítulos e servirem de voyeur em relação aos outros hóspedes.

Por isso mesmo, diferente das outras produções citadas acima, que levaram tipos estranhos e endinheirados para resorts catárticos que colocam um doloroso espelho diante de si, esta é a obra mais assertiva em face da branquitude dentre as três, até porque o propósito aqui não é a inclusão, e sim escancarar a segregação discriminatória de quem acha que pode pagar pela paz prometida.

Infelizmente, numa ilha onde tudo se é pago com o lance mais caro pelos milionários que freqüentam o local, até a integridade está à venda, e só cabe aos espectadores rir do absurdo pelo absurdo, pois é a maior catarse que nos resta: ver o quanto os poderosos e famosos são tão ridículos quanto qualquer um de nós, reles mortais, e talvez ainda mais carentes e inseguros por trás das pilhas de dinheiro que não conseguem lhes dar amor próprio.

Esta série imperdível está disponível na íntegra na plataforma de streaming da HBO Max.

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