A melhor série de 2021 talvez não tenha sido vista ainda por um amplo público como merece… Porém, se esta coluna puder fazer justiça, será indicando e coroando esta incrível produção como a melhor do ano (confira ao final do texto um ranking pessoal deste crítico).

Estamos falando de “Veneno” na HBO Max Brasil, um streaming que chegou no Brasil em 2021 com inúmeras produções originais e outras exclusivas da plataforma, que ampliam e muito as opções de representatividade plural tanto temática quanto de produção.

Um perfeito exemplo é a melhor minissérie lançada em 2020 internacionalmente, mas disponível para o streaming da HBO brasileira apenas em 2021: “Veneno”, criada por Javier Ambrossi e Javier Calvo, que foi ao ar no Atresplayer Premium na Espanha de 29 de março de 2020 a 25 de outubro do mesmo ano. O sucesso foi tanto que de minissérie a produção já teve continuação confirmada e irá se transformar num seriado com mais de uma temporada em breve.

Por enquanto, no pacote único de episódios já lançados, a produção narra a vida e a morte da cantora transexual e personalidade televisiva espanhola Cristina Ortiz Rodríguez, mais conhecida pelo apelido de “La Veneno”, em adaptação baseada na biografia “¡Digo! Ni puta ni santa. Las memorias de La Veneno”, de Valeria Vegas, autora que tinha a artista como ícone norteador para a própria transição de sua identidade de forma livre e emancipatória.

A minissérie segue a abertura de mercado para lugares de fala que não costumam ser contemplados pela indústria audiovisual, como com um elenco principal predominantemente composto por artistas transexuais e/ou travestis – assim como outra série paradigmática, “Pose” de Ryan Murphy, atualmente disponível na Netflix. – A própria Cristina La Veneno é interpretada em suas várias fases adultas por artistas que entendem na pele o que é sentir que nasceu num corpo que a princípio não lhe representava biologicamente. E a personalidade e talento destas intérpretes de fato transbordam a binariedade de um corpo conformado com padrões estéticos impostos pela sociedade…

O destaque fica para as duas últimas fases em termos de idade a interpretar a famosa personagem espanhola, as soberanas Daniela Santiago e Isabel Torres, o que não significa que suas participações deixem de aparecer por toda a minissérie, desde o primeiro capítulo, porque a narrativa é contada de forma não linear… Ou seja, as várias facetas e períodos históricos vão se misturando como num quebra-cabeça, em que não sabemos ainda a ordem nem a ligação de certos fatos, apenas que a minissérie começa com a protagonista já mais velha, um pouco esquecida pelas grandes mídias, mas tentando recuperar o saudoso glamour de ser idolatrada pela nação… Todas as outras intérpretes vão se embaralhando de forma fluida, numa ida e volta típica da própria forma com que La Veneno enxergava a vida.

Não adiantava viver algo, ela tinha de fabular e flutuar por sobre a realidade, de modo a reinventar não apenas o seu mundo como o de todos ao seu redor, e por isso ela era tão fascinante – em vida e na fantasia. É impossível resistir à sua personalidade magnética – que às vezes corria o risco de trair a si mesma, porque quando se vivia sobre nuvens plainando no alto, o perigo sempre é o de cair de um lugar mais alto. E esta ambivalência entre a ambição e a inocência de quem tinha a coragem de viver de seus sonhos, mesmo quando a vida lhe amargava pesadelos, é justamente porque Cristina ultrapassa a mera boa ficção e ganha ares de representar toda uma comunidade transexual e travesti que precisa se reinventar diariamente para viver num mundo que renega muitas vezes suas identidades, às vezes sob o preço de suas próprias vidas (lembremos que o Brasil é infelizmente um dos países recordistas em homicídios transfóbicos).

A minissérie já começa em nota altíssima, com participação de uma das atrizes-assinatura do cineasta Pedro Almodóvar (outro que não é estranho a fazer grandes histórias representatividades com personagens fluidas dentro da sigla LGBTQIA+): nada mais, nada menos que a ótima Lola Dueñas, a qual parece que guiará a narrativa, mas só está lá como participação especial e anfitriã que nos receberá na porteira e introduzirá o real elenco. Ela é quem “descobre” Cristina numa de suas reportagens nas ruas e praças de madrugada aonde vai se encontrar com o universo das mulheres transvestidas. Ao mesmo tempo, somos apresentados à narrativa do futuro, onde a mesma personagem já mais velha é “redescoberta” por um jovem que ainda não havia definido exatamente sua identidade de gênero (na pele de Lola Rodríguez) e que busca na ídola uma tabula referencial (é esta personagem que no futuro será a autora da biografia da artista na vida real, dentro e fora da trama, numa metaliguagem muito bem jogada sobre como a visão dos fãs de La Veneno está ali incluída na própria biógrafa se descobrindo desde jovem).

O primeiro capítulo é tão bem esquematizado em sua montagem temporal no vai e vem histórico que acerta em todas as cores e músicas a simbolizar cada período. Desde a inspiradora trilha sonora (cuja vontade é ouvir em looping no spotify, de Pet Shop Boys a Cyndi Lauper, clique aqui) aos figurinos e cenário, recortando questões de cada fase profissional. A minissérie perpassa desde o período em que ela era uma completa desconhecida ao sucesso triunfal e depois a decadência, além da possibilidade de voltar a brilhar, o que perpassa toda a minissérie sob a égide da interpretação visceral da mais velha das atrizes, Isabel Torres, ao lado da melhor coadjuvante de todos os tempos: Paca “La Piraña”, encarnada pela própria melhor amiga de Cristina na vida real – a maior catarse curativa e metalingüística da história de La Veneno, pois é muito significativo que a personagem verídica tenha aceitado revisitar as vivências compartilhadas.

Os episódios seguintes são menos norteados por seguir as idades temporais e muito mais guiados pelo tema central da respectiva fase de sua vida, que pode permear desilusão, tentação, traição e muitas outras reviravoltas… Seja voltando à infância no segundo episódio (com uma revelação total de intérprete mirim, Guille Márquez), ou fazendo um xeque-mate da tóxica relação que as mídias hegemônicas criam com suas celebridades, numa voracidade corrosiva que endeusa e consome ao mesmo tempo, no brilhante quinto episódio, possivelmente o mais profundo e bem finalizado de toda a minissérie.

E até o encerramento desta saga lírica e épica ao mesmo tempo é completamente não tradicional, pois possui o famoso final feliz no penúltimo episódio, com o melhor uso da trilha até então, completando um ciclo de sonhos e pesadelos que se misturam e catalisam na pista de dança com todas as suas idades se misturando… Até chegar ao destino trágico, verídico, infelizmente, pois, apesar de estarmos tratando de uma poderosa representante de toda uma comunidade que representa o T de LGBTQIA+, somos obrigados a lembrar que é a parte da sigla mais perseguida de todas, e cujas histórias precisam ser contadas para jamais voltarem a ser invisibilizadas pelo monopólio da memória hegemônica. A derradeira seqüência final chega a ter direito a homenagear uma bela cena cinematográfica de despedida e reinvenção que dialoga historicamente desde com o desfecho do famoso “Fellini 8 e ½” de Federico Fellini e “Peixe Grande e Suas Histórias” de Tim Burton.

Confira a lista completa de melhores séries de 2021 pelo crivo deste crítico:

  1. Veneno na HBO Max
  2. White Lotus na HBO Max (leia sobre em coluna anterior clicando aqui).
  3. Segunda Chamada na Globo Play (leia sobre em coluna anterior clicando aqui e aqui).
  4. Mare of Easttown na HBO Max (leia sobre em coluna anterior clicando aqui).
  5. Succession na HBO Max, terceira temporada (leia sobre em coluna anterior aqui).
  6. Pose na Netflix, temporada final.
  7. Servant na Apple TV.
  8. The Underground Railroad na Amazon Prime Video (leia sobre em coluna anterior clicando aqui).
  9. WandaVision na Disney Plus (leia sobre em coluna anterior clicando aqui).
  10. Cenas de um Casamento na  HBO Max.

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